quinta-feira, 30 de junho de 2011

Um dia pessimamente administrado


Esta semana recebi um e-mail de uma pessoa amiga muito preocupada porque estava há dias sem resposta de outros e-mails. Além da eterna falta de tempo, não encontrei justificativas para a falta de notícias. Para tentar me justificar, terminei relatando a minha rotina de um dia quase normal.

- Acordei às 6:00h e naveguei por portais jurídicos, sites de jornais e outros oficiais (TJ, CNJ...). Postei um comentário no blog sobre a PEC do divórcio, mas não gostei da primeira parte. Depois, respondi vários e-mails;

- Tomei café às 7:30h e pouco depois das 8:00h já estava sentenciando. Julguei procedente uma Ação de Revisão de Contrato de Financiamento, deferi um pedido incidental em outro processo e determinei a remessa para a Comarca de Salvador, julguei 4 processos criminais e absolvi todos os acusados. (Apesar de ser “quase” abolicionista, foi coincidência tantas absolvições. O Promotor já havia se manifestado pela absolvição e aproveitei para fazer tudo de uma vez.);

- Almocei às 12:00h e cheguei ao fórum às 12:45h. Sou privilegiado: gasto apenas 5 minutos de casa ao fórum;

- Primeira audiência às 13:30h. Réu preso em flagrante por porte de arma. As testemunhas não compareceram. O réu já estava preso há 6 meses e eu não consigo concluir a instrução. Resultado: remarquei a audiência para agosto e soltei o réu;

- Retornei ao gabinete às 14:00h, pois tinha marcado para entrevistar 8 candidatos ao cargo de Técnicos de Urna para trabalharem na eleição. Esta seleção deveria ter sido feita pela "terceirizada", mas resolvi entrevistar pessoalmente os candidatos e indicar, pois fico mais seguro assim;

- Às 15:30h me reuni com o pessoal do cartório eleitoral para definir os 3 candidatos que seriam indicados. A Chefe do Cartório ficou com a incumbência de comunicar as escolhas. É chato, mas não tem outro jeito;

- Retornei à sala de audiências e ouvi mais duas testemunhas em outro processo. Deixei de realizar mais duas audiências por falta das intimações. O problema da comunicação ainda é um entrave para a Justiça;

- Às 16:00h participei de uma reunião com o prefeito da cidade, delegado, comandante da polícia e assistentes sociais do Creas para tratar do problema do crack na cidade. Boa reunião;

- Às 17:30h retornei ao gabinete e despachei mais alguns processos. Saí do fórum mais de 18:00h;

- Em casa retornei à Internet para abrir a caixa postal, ler mensagens no Twitter e Facebook, ler as notícias do dia, navegar sem compromisso...;

- Quando me dei conta, ainda estava navegando às 20:43h, já sem gravata e sem sapato, respondendo o e-mail sobre a falta de tempo.

No final dessa história, o tempo para a família foi quase nenhum e absolutamente nenhum para uma atividade física ou para o lazer. Talvez seja por isso que quase todos nós temos problemas cardíacos e sofremos com a hipertensão.

Não reclamo da vida que levo. Estou cansado, mas satisfeito e agradecido por tudo o que tenho. Antes de dormir, gosto de me lembrar de uma oração que começa mais ou menos assim: Obrigado, Senhor, por tudo o que tenho. Atende aos pedidos daqueles que nada tem e dai-me apenas o que vos resta...

*Gerivaldo Neiva é Juiz de Direito na Bahia e membro da Associação Juízes para a Democracia.
 
 
 

terça-feira, 28 de junho de 2011

Entrevista com Volney Berkenbrock: Candomblé. A unidade dos níveis da existência



Adital

“Na concepção do Candomblé, praticamente todas as atividades religiosas têm por finalidade última justamente a busca da harmonia, da unidade entre os dois níveis da existência. Dentro deste contexto, é que ocorre a experiência religiosa central do Candomblé: o momento do transe”, assinala Volney José Berkenbrock, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, na Universidade Federal de Juiz de Fora. Na lógica religiosa do Candomblé, tudo está incluído, mesmo as outras religiões. A partir dessa concepção, todos fazem parte do mundo e interagem “para que aconteça a harmonização entre Orum e Aiyê”, explica. Esta mentalidade inclusiva, menciona, pode ser um bom facilitador para o diálogo inter-religioso.

Na entrevista que segue, concedida, por e-mail, à IHU On-Line, Berkenbrock menciona alguns aspectos históricos das religiões afro-brasileiras e como elas se organizaram no Brasil após chegarem “de carona com a escravidão”. Entre as práticas realizadas, o pesquisador destaca que essa é uma religião “‘contada’ adiante”, repleta de mitos, além de ser inclusiva e dialogal.
Berkenbrock é doutor em Teologia pela Faculdade de Teologia Católica da Universidade Federal de Bonn, na Alemanha, com a tese Die Erfahrung der Orixas. É autor de A experiência dos Orixás (Petrópolis: Vozes, 1998).
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as especificidades das religiões afro-brasileiras?

Volney José Berkenbrock - Cada religião tem sua forma de organização, sua crença, sua história particular etc. De certa maneira, tudo isso forma a especificidade de cada religião, independentemente de muitos elementos refletirem estruturas e modos de pensar semelhantes. Assim, as religiões afro-brasileiras têm muitas propriedades que lhes são características, mas que ao mesmo tempo se assemelham a de outras religiões. Aponto aqui algumas especificidades, longe, porém, de querer dizer que sejam estas as únicas especificidades, bem como se afastando também da ideia de que estes elementos apontados sejam tão somente destas religiões.

a) Religiões reconstruídas no exílio. A expansão de uma religião dá-se comumente por migração ou por atividade missionária. Muitas das religiões que temos no Brasil, aqui chegaram porque fiéis destas religiões para cá migraram. Outras – certamente a maioria – se expandiram em terras brasileiras por atividades missionárias. Com as religiões afro-brasileiras foi diferente. Elas vieram ao Brasil de carona com a escravidão. Não vieram, portanto, de forma livre nem organizada. Vieram dilaceradas – sob muitos pontos de vista – como dilaceradas eram as vidas dos escravos. Neste exílio sem liberdade, onde a maioria dos escravos não sobrevivia muitos anos, havia poucas possibilidades tanto de exercício da religião, quanto de transmiti-la adiante. Ao final do período de escravidão começou a acontecer uma “reconstrução” religiosa a partir de tradições religiosas africanas. E esta reconstrução se deu de forma diferente nos diversos lugares, juntando elementos “sobreviventes da grande tribulação”.

b) Religiões não-missionárias. Por sua origem, estas religiões eram religiões étnicas, ligadas a grupos de famílias ou clãs. Não havia nelas a ideia de expandir a religião através de pregação ou de busca de conversão de outras pessoas. Esta característica não-missionária dos grupos de origem marcou também as religiões afro-brasileiras. Não há atividades “missionárias” no sentido de entender que é próprio da religião buscar aumentar o número de adeptos.

c) Religiões iniciáticas. Muitas pessoas frequentam casas de religiões afro-brasileiras apenas de forma esporádica. Vão até lá em busca de algum conselho, de alguma receita para a vida ou para doença, de alguma ajuda espiritual. Este contingente muito grande de pessoas não pode, porém, ser contado como membros da religião. O ser membro pleno de uma religião afro-brasileira acontece à medida que o fiel passa pelos ritos de iniciação. Trata-se, pois, de religiões iniciativas, em que os membros vão participando cada vez mais ativamente e assumindo funções e tarefas conforme vão avançando em sua iniciação. Algumas delas, como o Candomblé, por exemplo, têm um tempo muito longo de iniciação. Diz-se que o ciclo iniciativo completo dura 21 anos. O período básico de iniciação se encerra com a obrigação (os rituais) de sete anos.

d) Religiões de comunidade. A entrada nestas religiões se dá, como dito acima, por processo iniciativo. Este é feito sempre em uma comunidade específica. Assim sendo, os fiéis são membros sempre de uma comunidade específica e não “genericamente” membros da religião. Por exemplo, um fiel da Umbanda é fiel da Umbanda em sua casa de iniciação. Em outra casa de Umbanda ele é apenas visitante. Não há assim a ideia de pertença à religião de uma forma genérica, como é o caso da maioria das igrejas cristãs, mas sempre de pertença a uma comunidade específica, onde se fez a iniciação.

e) Religiões de tradição oral e não religiões do livro. As religiões afro-brasileiras não têm nenhum escrito sagrado ou texto que tenha alguma importância ou autoridade maior do ponto de vista religioso. Toda a transmissão de conhecimentos e a garantia de autenticidade se dá pela oralidade. A religião é “contada” adiante. Para isto, desempenha um papel muito importante nos mitos. Neles está contida boa parte do conteúdo religioso apreendido pelos fiéis. Assim, aprender e experienciar (viver) os mitos é parte do processo iniciatório.

f) Religiões de experiência e não de palavra. Na maioria dos rituais religiosos das religiões afro-brasileiras, o uso da palavra explicativa ou exortativa não tem nenhum espaço. Não há pregação, não há leitura, não há explicação. Os rituais são cantados e dançados. Para um visitante não familiarizado, os primeiros contatos com rituais afro-brasileiros não dizem absolutamente nada. É necessário um bom tempo até que esta lógica experiencial e não racionalizada pela palavra explícita faça algum sentido e comece a compor um quadro.

g) Religiões sincréticas, inclusivas e dialogais. A formação das religiões afro-brasileiras se deu a partir de “sobrevivências religiosas”. Estas religiões não foram organizadas no Brasil, repetindo sua organização de origem. Elas são, em muitos aspectos, composições novas, novos arranjos com partes de melodias. Assim há nelas uma composição de elementos chamada, muitas vezes, de sincretismo. Mas este sincretismo não pode ser entendido como “mistura ilícita”, mas sim como uma “nova melodia”. E na composição desta nova melodia, muitos são os elementos “incluídos”. Assim, pode-se dizer que, em boa parte, as religiões afro-brasileiras são religiões inclusivas, isto é, com capacidade de incluir e integrar na mesma melodia, elementos diversos. Este é, aliás, um mecanismo de resistência muito interessante, principalmente da Umbanda. Sua forma de resistência se dá não pela rejeição de elementos de outras religiões, mas sim pela inclusão. Esta realidade faz com que, a meu modo de ver, estas religiões sejam profundamente dialogais. Não no sentido de que sejam fóruns de diálogo, mas no sentido de serem lugares onde o diálogo já se operou e continua operando. A meu modo de ver, o sincretismo deve ser visto como um processo muito interessante e positivo de diálogo.

IHU On-Line – Como o senhor descreve a experiência religiosa no Candomblé?

Volney José Berkenbrock - Para se falar em experiência religiosa no Candomblé, é preciso ter um pouco presente a concepção cosmológica do Candomblé. Para esta religião, a existência subsiste a duas maneiras: à maneira palpável e finita (chamada de Aiyê) e à maneira não palpável e infinita (chamada de Orum). Toda a existência é, pois, Orum ou Aiyê (ou em parte as duas coisas). Assim, por exemplo, os seres humanos, com toda a sua corporeidade, pertencem ao nível do Aiyê. (A inteligência do ser humano, porém pertence ao Orum, bem como a filiação de cada ser humano de um Orixá). Dizem os mitos criacionais que, no início, estas duas maneiras eram unidas, podendo haver livre trânsito entre elas. A quebra de um tabu fez com que houvesse a divisão, de forma a separar Orum e Aiyê. A existência, porém, é a soma dos dois. Assim, a boa existência, a harmonia, a felicidade, a saúde, enfim, a realização consistem sempre no equilíbrio entre Orum e Aiyê. Na concepção do Candomblé, praticamente todas as atividades religiosas têm por finalidade última justamente a busca da harmonia, da unidade entre os dois níveis da existência. Dentro deste contexto é que ocorre a experiência religiosa central do Candomblé: o momento do transe. Nele, assim entende esta religião, acontece por um instante, uma unidade entre Orum e Aiyê. Por conseguinte, a experiência do transe é entendida como a experiência da unicidade dos mundos, da harmonia buscada, da recomposição da unidade primordial perdida. No transe, a verdade se torna realidade, ou vice-versa. Por isso, no Candomblé, o transe é sempre um momento solene, festivo, alegre, de dança.

IHU On-Line – Quais são as divindades do Candomblé e suas características?

Volney José Berkenbrock - Falar em divindades do Candomblé é algo muito complexo, pois a palavra divindade não é unívoca. Talvez fique mais simples falar que no Candomblé há a ideia de um ser primordial, que tudo possibilita, a partir do qual tudo existe. Este ser é chamado por diversos nomes, dependendo do dialeto de origem. Os nomes mais comuns são Olorum (literalmente “o senhor do não palpável”) ou Olodumaré (literalmente “o senhor do eterno destino”). Toda a existência é um desdobrar-se de Olorum, pois nele estão presentes todas as possibilidades, como que “dobradas”. Cada existência individual é como que um desdobramento de uma possibilidade que sempre existiu. Por isso, nada há que nunca tenha existido e nada haverá que não existe. Olorum não é entendido como um Deus pessoal, isto é, um Deus relacional. Ele é o possibilitador primordial. A existência individual concreta é regida por forças. Estas forças são personificadas, têm mitos próprios e são chamadas genericamente de Orixás (literalmente “regentes da inteligência”). Assim, por exemplo, a força que faz uma árvore crescer é personificada no Orixá Ossaim, a força que faz um rio fluir é personificada no Orixá Oxum.
Todas as forças naturais que regem o universo são personificadas e chamadas de Orixás. Também as forças no sentido de virtudes, de modo que a força da justiça é chamada de Xangô, a força pacificadora é chamada de Oxalá, a força do amor materno é chamada de Jemanjá. Da mesma forma, se entende que cada pessoa é filho/filha de uma força, ou seja, filho/filha de um Orixá. E isto, independentemente de a pessoa ser fiel do Candomblé ou não. Entende-se que pertence à natureza de cada pessoa esta filiação. Havia na origem da religião do Candomblé (no povo Ioruba, na África) uma infinidade de Orixás. O processo de formação da religião no Brasil, principalmente devido à escravidão, fez com que o número de Orixás cultuados fosse muito menor e que cada Orixá tenha assumido características diversas. O número de Orixás, cujos cultos sobreviveram no Brasil, não passam de 30, sendo, porém, cada qual composto por uma série de características. Assim a Orixá (feminina) Oxum, por exemplo, é a Orixá das águas doces correntes (dos rios), mas é ao mesmo tempo a Orixá da estética, da beleza, da feminilidade e igualmente é a Orixá do conhecimento, da sensibilidade, do processo divinatório etc. Podemos dar outro exemplo no Orixá Oxalá, que é o Orixá criador, o iniciador, mas ao mesmo tempo o Orixá tanto da força pacificadora como da liderança.

IHU On-Line – Como esses Orixás interferem na vida dos praticantes da religião e qual sua importância para eles?

Volney José Berkenbrock - Como já afirmado anteriormente, cada pessoa é filho/filha de um determinado Orixá. Com isto, a busca da harmonia entre Orum e Aiyê se traduz concretamente no dia-a-dia, na busca pela harmonia com o Orixá pessoal. Cada Orixá tem suas características próprias no que tange a todos os aspectos da vida: de cores, de comidas, de profissão, de comportamento, de personalidade, de relacionamentos. Assim, a harmonia na vida, na compreensão do Candomblé, é exatamente a harmonia com o Orixá pessoal. O Orixá, portanto, influencia todos os aspectos da vida do fiel. E a busca da harmonia com o Orixá é – no fundo – a busca por si mesmo, por melhor viver suas aptidões e características. A infelicidade, a doença, o erro não são vistos no Candomblé como “pecado”, mas sim como desarmonia. Por isso, quando algo errado acontece na vida de alguém, são necessários rituais que novamente harmonizem o fiel com o seu Orixá. A harmonia entre o fiel e seu Orixá é o que acontece no microcosmos do dia-a-dia, da busca pessoal por conhecer o Orixá pessoal e com ele integrar-se cada vez mais. Na linguagem de macrocosmos, isto é chamado justamente de harmonia ou equilíbrio entre Orum e Aiyê, do qual depende a boa existência do todo.

IHU On-Line – E o que significa axé?

Volney José Berkenbrock - Axé é o nome que se dá à energia do equilíbrio entre Orum e Aiyê, entre o fiel e seu Orixá. Para que não haja desarmonia na existência (como um todo ou existência individual), é preciso uma constante troca de energia. Na linguagem do Candomblé, isto é chamado de “liberação de Axé”. Assim todos os rituais religiosos, feitos em grupo ou individualmente, “liberam Axé”, isto é, contribuem para a harmonização do sistema. Axé é, assim, a força que tudo transpassa, que tudo penetra no sentido de provocar (ou devolver) harmonia. Sendo um conceito altamente positivo, a palavra Axé é usada inclusive como saudação, como desejo de “tudo de bom”. É comum, pois, que pessoas do Candomblé possam se saudar com um “Axé”, dizendo indiretamente: “desejo-lhe harmonia”.

IHU On-Line – Como o Candomblé dialoga com outras religiões, em especial com o Cristianismo, considerando o histórico da relação entre ambas tradições religiosas?

Volney José Berkenbrock - Para se pensar em diálogo entre Candomblé e Cristianismo, não se pode deixar de ter em mente que a história do encontro entre estas duas religiões é marcada por perseguições e falta de diálogo por parte do Cristianismo em relação ao Candomblé. E nesta história, o Cristianismo era a religião dominante, enquanto o Candomblé era a religião dos dominados. Mesmo tendo em mente esta história desfavorável ao diálogo, pode-se afirmar que aconteceram também de parte a parte situações de encontros positivos, sobretudo pelo fato da dupla pertença: muitas pessoas frequentavam (e frequentam) tanto o Candomblé quanto o Cristianismo (sobretudo o Catolicismo). Esta dupla pertença ofereceu espaços de convivência, de compreensão, de diálogo. Uma posição favorável ao diálogo inter-religioso, por parte das igrejas cristãs, é algo relativamente recente – e rejeitado ainda por muitas igrejas. Por parte do Candomblé, ocorreu neste particular muito mais uma reação à busca de diálogo por parte de igrejas cristãs do que propriamente uma mudança de posição no que diz respeito a isto. Assim, membros do Candomblé participaram de muitos congressos, encontros, fóruns de diálogo inter-religioso. Por outro lado, gostaria de chamar a atenção para o fato de o Candomblé não ser uma religião de academia, e os círculos “eruditos” de diálogo são geralmente um espaço que poucas pessoas do Candomblé acessam. Há, entretanto, toda uma prática de diálogo que ocorre muito mais na base da mútua bem-querença, do mútuo respeito e carinho, do reconhecer-se mutuamente do ponto de vista religioso. Assim, por exemplo, eu – que sou cristão - recebo muitas vezes convites para participar de festas em casas-de-santo do Candomblé. São por vezes festas religiosas, são por vezes festas ‘profanas’ (como aniversários, por exemplo). Faço-me presente quando posso e em muitas destas festas religiosas recebo um lugar de honra para sentar. Ali não se está preocupado primeiramente com diálogo inter-religioso, mas entendo e sinto estes momentos como momentos privilegiados de conversa. Assim, diria, o diálogo inter-religioso acontece muito mais como um diálogo de gestos, no qual não há a pressão para se chegar a uma conclusão, a um objetivo. Este diálogo é sempre construção: de proximidade, de respeito, de entendimento, de humanidade.

IHU On-Line – Mas o Candomblé oferece alguma proposta para que o diálogo inter-religioso seja possível?

Volney José Berkenbrock - Como assinalado acima, o diálogo inter-religioso com as religiões afro-brasileiras dá-se mais como um diálogo de gestos, de convites, de acolhimento. Neste sentido, não se pode dizer que há uma proposta do Candomblé para o diálogo inter-religioso (pelo menos não que eu a conheça). O que há são práticas, que vão se solidificando com o tempo, construindo mundos dialogais. Por parte do Candomblé, este diálogo tem um facilitador “teológico” muito grande, pois o Candomblé tem uma compreensão inclusiva da existência. Nada há que esteja “fora” de sua lógica. Assim, todas as práticas religiosas de outras religiões são entendidas também como “liberadoras de axé”. Nesta lógica, não há no Candomblé a ideia de que as outras religiões estejam “fora”, sejam expressão, um outro universo. Elas são parte do mesmo mundo e interagem – na compreensão do Candomblé – para que aconteça a harmonização entre Orum e Aiyê. Certa vez, num seminário sobre diálogo inter-religioso, onde o tema era “as religiões e a paz”, um dos participantes disse que se sentia um pouco excluído, pois era ateu, e como tal não estava incluído no diálogo inter-religioso. Uma Yalorixá (mulher líder de uma casa de Candomblé) presente respondeu mais ou menos assim: “Filho, não tem como estar fora. Mesmo que você pense que está fora, você está dentro e assim incluído”. Ela não falava isto para “dar uma lição”, mas a partir de uma profunda convicção de que, na lógica religiosa do Candomblé, tudo está incluído (mesmo que não se sinta incluído ou não se queira incluído). Esta mentalidade inclusiva diante de toda realidade – e com isso também diante de outras religiões – creio, é uma boa facilitadora para o diálogo.

IHU On-Line – Qual é a sua opinião sobre o ecumenismo para a construção da paz mundial?

Volney José Berkenbrock - Creio que, na proposta de fé e de vida de todas as religiões, esteja o desejo de paz. Historicamente, porém, foi o desejo de confronto, o desejo de submeter o outro, de dominar é que deu o tom. Como esta situação foi historicamente construída, penso que é possível, também, historicamente, construir outra posição: a contribuição para que haja mais paz mundial a partir da força que representam as religiões.
Assim, o caminho do ecumenismo e do diálogo inter-religioso como elementos constitutivos de uma nova ordem, uma ordem de paz mundial, precisa historicamente ser construído, passo a passo, gesto a gesto. E para que ele comece a acontecer, entendo que há uma decisão forte a ser tomada, a decisão da vontade. Não são as doutrinas religiosas que constroem ou destroem a paz. Quem constrói ou destrói a paz é a vontade. Trabalhar para que o ecumenismo e o diálogo inter-religioso sejam portadores de paz, ao meu modo de ver, não é tanto um trabalho no sentido de conseguir “consensos doutrinais”, mas conjugação de vontades.

IHU On-Line - Como fazer uma aproximação de fato entre as diversas religiões, respeitando características próprias de cada uma, e pensar em posições universais?

Volney José Berkenbrock - Estou convencido de que a pluralidade é mais afeita ao modo de compreensão que tenho de Deus do que a unidade. Assim, conseguir viver num mundo onde a pluralidade – inclusive religiosa – seja não apenas aceita, mas sentida – inclusive do ponto de vista de fé – como positiva, isto seria já um grande passo. E talvez por aí deva passar a ideia de posições universais e não tanto pela ideia de posições únicas do ponto de vista de algum conteúdo. Temo que a busca de posições universais possa levar a chegarmos a elas, mas não mais com a força de cada religião. Seriam, pois, posições “reconhecidas” por todos, mas não “sentidas” e talvez nem vividas.

 
Fonte:Adital


segunda-feira, 27 de junho de 2011

Projeto promove restauração de livros e ressocialização de presos, em Maringá

*Adital

Oferecer um caminho de profissionalização e de integração social. Foi com esse objetivo que a Universidade Estadual de Maringá (UEM), no Paraná, e os presos da Penitenciária Estadual de Maringá realizaram uma parceria que já resultou na restauração de mais de 15 mil livros.

O projeto, que em julho completará 10 anos de atividades ininterruptas, conta com uma equipe de 20 presos que trabalham de segunda a sexta-feira, oito horas por dia. Para participar, o preso precisa manifestar interesse e receber uma avaliação do grupo de profissionais do sistema penal. Após a aprovação, o preso começa o curso de restauração de livros organizado por técnicos da UEM e, em seguida, inicia o trabalho monitorado por outro detento, nomeado "mestre de materiais”.

Além da ajuda de custo e da redução de um dia de pena para cada três dias trabalhados, os cerca de 172 presos que já passaram pelas oficinas, ganharam principalmente aumento da autoestima, integração social e interesse pela escola.
 
Fonte: Governo do Estado do Paraná
 
Fonte:Adital
 
 

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Uma crônica sobre lembranças de uma surra e sua relação com o Direito

Lovers in moonlight (Marc Chagall)


Lembranças de uma surra e sua relação com o Direito
Gerivaldo Alves Neiva*
 
Na tradição machista brasileira, também no interior da Bahia, não tanto como há alguns anos, ainda é comum se ouvir dizer que o marido deu uma “surra” na mulher. Quando criança, ouvi muitos relatos sobre casos dessa natureza e não me recordo muito bem da reação das pessoas. O certo é que não eram reações extremadas. Quase normais. Sem muita indignação ou revolta. Algo como: é assim mesmo! Nem mesmo das mulheres, pelo que me vem à mente, a reação era como deveria ser, segundo meu juízo atual, esteja certo ou errado. Naquele tempo, tudo era absurdamente natural. Talvez um pouco de solidariedade no machucado, e só.
Da parte dos homens, nem dó e nem compaixão. Apenas homenagens ao igual. Símbolo de virilidade e respeito. Poucos, muito poucos, pelo que me vem à mente, repudiavam a atitude. O silêncio público de todos os homens, aprovando o comportamento do outro, no entanto, era estrondoso. Não sei a razão. Talvez por não querer meter a mão em briga de marido e mulher. Talvez solidariedade de gênero. Talvez brutalidade igual. Tudo absurdamente natural. É assim mesmo!
Certa vez, um homem deu uma surra em uma mulher e o caso, estranhamente, virou chacota em uma cidade qualquer, como tantas outras. Todos riram e se divertiram. Homens, mulheres e adolescentes. Eu também ri, não nego. Depois, tempos depois, deixei de rir daquele caso e ele, talvez por vingança, não me fugiu mais da memória. Primeiro, porque o caso é violento e as pessoas se divertiram com ele e, segundo, porque às vezes misturo este caso com o Direito.
Na verdade, não é a surra, por ela mesmo, que se mistura com o Direito. Um homem espancando uma mulher, definitivamente, não combina com o Direito. O que me intriga ainda hoje é pensar no motivo que levou o homem a surrar a própria mulher. Não no motivo que foi dito. Mais do que isso, no motivo que não foi dito. E é este não dito, o que não tem domínio e nem nunca terá, que me faz relacionar o Direito à surra que o homem deu na mulher. Daí, então, quando penso no Direito normatizado e proibitivo de quase tudo, a face horrorizada do homem movido pelo ciúme e inveja de ver uma mulher feliz e na possibilidade de sua mulher ser cumplice da felicidade de outra mulher, se mistura com meus códigos, leis e livros jurídicos em minha estante.
Dois rapazes e duas moças. Amigos de infância. Na mesma festa da padroeira, o primeiro beijo e início do namoro. A data do noivado foi combinada para o mesmo dia. Casamento também. Promessas de que um batizaria o filho do outro. Missa juntos aos domingos. Madrugadas de “carteado” inocente. Churrasco na casa de um e depois na casa do outro. Homens no futebol, mulheres na cozinha. Mulheres na novela, homens na sala. Tudo absurdamente natural e bom até aquela noite.
Um desencontro, uma dor de cabeça, uma indisposição. Uma rotina quebrada. Naquele domingo, apenas um casal repete a missa e ninguém ousou ocupar o espaço vazio no banco da Igreja. Não estavam lá em carne e osso, mas firmes e concretos na imaginação e desejo de todos. Para os outros, eles estavam ali. Na consternação depois da comunhão, em silencio, os pensamentos se entrelaçavam: onde estarão, o que fazem, o que houve, ajudai Senhor...
Ela viu primeiro e torceu para que ele também não visse. Postou-se de lado, tomou-lhe a frente, atrasou o passo e de nada adiantou. Ele também viu, no retorno para casa, a outra mulher, a mulher do amigo deles, com outro homem que não era o dela, abraçados, beijados e apaixonados. Os dois viram e, apesar disso, não se olharam. Apenas viram e cada um sabia o que tinha visto. Novamente os pensamentos entrelaçados. O que ele viu? O que ela viu? Ele apertou a mão dela e nada disse. Ela sentiu-se amparada, apesar do coração apertado, e também nada disse. Seguiram, apenas.
Ao primeiro empurrão, a surpresa. Aos murros e chutes que se seguiram, a dor e as lágrimas:
- Por quê? O que te fiz, homem?
Mais murros e chutes, sem palavras. A expressão de ódio, transtornado, embrutecido repentinamente. As portas fechadas e os vizinhos dormindo. Bastou entrar em casa e aquele não era mais seu homem. Ou agora era o que realmente sempre foi. O que era verdadeiro e o que tinha sido máscara? A única certeza, agora, é que o homem, fosse quem fosse, era real e batia com força e sem parar. Como não chorar de dor? Dor no corpo e na alma. Impossível reagir ou revidar. Dói tudo. É assim mesmo. O que dizer amanhã? Perguntas virão. Mesmo que não verbalizadas, estarão na boca de todos. Perguntas como vômito. Se ao menos soubesse a razão...
Na manhã seguinte – melhor tivesse morrido –, olhos de quem não dormiu e também de quem apanhou muito. Marcas por todo o corpo, por dentro e por fora. Mesmo assim, café posto, voz fina e quase um sussurro: - por quê? A resposta sabida ou imaginada:
- Para que jamais faças igual! Que te sirvas de lição! Para que jamais ouse! Para que sempre te lembres das dores em teu corpo. Para que jamais ouses pensar. Para que esqueças o que viu. Para que a cena se apague de tua mente.
Uma surra preventiva. A turba de homens comemorou. Ele é o melhor de nós. Corta o mal antes mesmo da raiz. Não permite, aliás, que a semente germine. Outras mulheres também riram. Todos os homens riram. Namorados e namoradas também riram. Noivos. Toda a cidade. Isto sim! Pronto, esta jamais ousará. Lembrará para sempre. Jamais abandonará seu posto de mulher fiel, obediente e honesta. Apanhou antes mesmo de errar! Que sirva de exemplo para todas!
No corpo, marcas e dores. Na alma, nada. Nem tristeza, nem alegria, nem saudade, nenhum sentimento desses que só se sente. Apenas silêncio e as dores sentidas e não sentidas no corpo. Sonhos tolhidos antes mesmos de serem sonhados. A felicidade entristecida antes de qualquer riso. Sabores, odores e tatos partidos antes de sentidos. A vida morta antes de vivida. Olhares cegados antes de correspondidos. Resta a vida nua e sem vida. Resta esta vida para ser vivida assim mesmo. É assim mesmo!
Na mente do homem, certamente, uma grande confusão. Minha mulher é minha. Meu amor é maior. Nada pode ser maior do que ele. Não posso permitir felicidade alheia maior do que a minha. Só a mim pode fazer feliz minha mulher. Sim. Importa o que dizem e o que pensam os outros. Não. Nada mais me importa. Isto tudo é insuportável. É insuportável ao homem a mistura do dito e o não dito. O pensado e o não pensado. O querido e o não querido. Bateu em quem, finalmente? Na mulher, na raiva, no ciúme, na inveja, em si mesmo? Perguntas difíceis e respostas mais difíceis ainda.
Agora lembra, também em busca de razões, como flashes rápidos, a cada murro e a cada chute, as imagens se misturando, ora reais, ora abstratas, em sua mente. Como se em transe, vê o homem que batia trocando de lugar e de papel com o homem que beijava e gozava na outra mulher; o homem que batia trocando de lugar e de papel com a mulher que amava e beijava o outro homem; a mulher que apanhava trocando de lugar e de papel com a outra mulher que amava e gozava com outro homem; a mulher que apanhava representando todas as mulheres do mundo amando e gozando com todos os homens do mundo. Ora, quem era, finalmente, o homem que batia?
São passados muitos anos e continuo pensando sobre este caso. Penso no fato da surra, é claro. Penso muito também, talvez até mais, nas razões da surra e em todos os conflitos daí decorrentes. Por que razão um homem surra uma mulher que diz ser sua? Por que antecipa o irreal, a possibilidade sequer cogitada, o devir incerto, a ameaça do nada e, levado pelo ódio – que pensa ser amor – surra a mulher que diz ser sua? Por que se define o ainda não acontecido como crime e por que se deve punir o não acontecido que alguém define como crime? Se o não acontecido ainda não aconteceu, como interpretá-lo como crime? Por que punir a possibilidade do prazer? O que fazer, então, com os desejos e prazeres contidos, sob ameaça de surra? Por que se deve apanhar preventivamente? Por fim, em que pensavam e em que não pensavam, o homem que batia e a mulher que apanhava, no momento da surra? São essas inquietações angustiantes que me fazem lembrar do Direito.
Sobre isto, preciso pensar mais para continuar escrevendo. Isto vai ser outro dia. Preciso relacionar os personagens dessa história com nós mesmos, com os outros, com a liberdade, nossos desejos, medos, a repressão, a lei, o Direito e a Justiça. O desafio é imenso: como afastar o Direito da força e do castigo e aproximá-lo da leveza e do amor pelo outro? 
Na tradição machista brasileira, também no interior da Bahia, não tanto como há alguns anos, ainda é comum se ouvir dizer que o marido deu uma “surra” na mulher. Quando criança, ouvi muitos relatos sobre casos dessa natureza e não me recordo muito bem da reação das pessoas. O certo é que não eram reações extremadas. Quase normais. Sem muita indignação ou revolta. Algo como: é assim mesmo! Nem mesmo das mulheres, pelo que me vem à mente, a reação era como deveria ser, segundo meu juízo atual, esteja certo ou errado. Naquele tempo, tudo era absurdamente natural. Talvez um pouco de solidariedade no machucado, e só.
Da parte dos homens, nem dó e nem compaixão. Apenas homenagens ao igual. Símbolo de virilidade e respeito. Poucos, muito poucos, pelo que me vem à mente, repudiavam a atitude. O silêncio público de todos os homens, aprovando o comportamento do outro, no entanto, era estrondoso. Não sei a razão. Talvez por não querer meter a mão em briga de marido e mulher. Talvez solidariedade de gênero. Talvez brutalidade igual. Tudo absurdamente natural. É assim mesmo!
Certa vez, um homem deu uma surra em uma mulher e o caso, estranhamente, virou chacota em uma cidade qualquer, como tantas outras. Todos riram e se divertiram. Homens, mulheres e adolescentes. Eu também ri, não nego. Depois, tempos depois, deixei de rir daquele caso e ele, talvez por vingança, não me fugiu mais da memória. Primeiro, porque o caso é violento e as pessoas se divertiram com ele e, segundo, porque às vezes misturo este caso com o Direito.
Na verdade, não é a surra, por ela mesmo, que se mistura com o Direito. Um homem espancando uma mulher, definitivamente, não combina com o Direito. O que me intriga ainda hoje é pensar no motivo que levou o homem a surrar a própria mulher. Não no motivo que foi dito. Mais do que isso, no motivo que não foi dito. E é este não dito, o que não tem domínio e nem nunca terá, que me faz relacionar o Direito à surra que o homem deu na mulher. Daí, então, quando penso no Direito normatizado e proibitivo de quase tudo, a face horrorizada do homem movido pelo ciúme e inveja de ver uma mulher feliz e na possibilidade de sua mulher ser cumplice da felicidade de outra mulher, se mistura com meus códigos, leis e livros jurídicos em minha estante.
Dois rapazes e duas moças. Amigos de infância. Na mesma festa da padroeira, o primeiro beijo e início do namoro. A data do noivado foi combinada para o mesmo dia. Casamento também. Promessas de que um batizaria o filho do outro. Missa juntos aos domingos. Madrugadas de “carteado” inocente. Churrasco na casa de um e depois na casa do outro. Homens no futebol, mulheres na cozinha. Mulheres na novela, homens na sala. Tudo absurdamente natural e bom até aquela noite.
Um desencontro, uma dor de cabeça, uma indisposição. Uma rotina quebrada. Naquele domingo, apenas um casal repete a missa e ninguém ousou ocupar o espaço vazio no banco da Igreja. Não estavam lá em carne e osso, mas firmes e concretos na imaginação e desejo de todos. Para os outros, eles estavam ali. Na consternação depois da comunhão, em silencio, os pensamentos se entrelaçavam: onde estarão, o que fazem, o que houve, ajudai Senhor...
Ela viu primeiro e torceu para que ele também não visse. Postou-se de lado, tomou-lhe a frente, atrasou o passo e de nada adiantou. Ele também viu, no retorno para casa, a outra mulher, a mulher do amigo deles, com outro homem que não era o dela, abraçados, beijados e apaixonados. Os dois viram e, apesar disso, não se olharam. Apenas viram e cada um sabia o que tinha visto. Novamente os pensamentos entrelaçados. O que ele viu? O que ela viu? Ele apertou a mão dela e nada disse. Ela sentiu-se amparada, apesar do coração apertado, e também nada disse. Seguiram, apenas.
Ao primeiro empurrão, a surpresa. Aos murros e chutes que se seguiram, a dor e as lágrimas:
- Por quê? O que te fiz, homem?
Mais murros e chutes, sem palavras. A expressão de ódio, transtornado, embrutecido repentinamente. As portas fechadas e os vizinhos dormindo. Bastou entrar em casa e aquele não era mais seu homem. Ou agora era o que realmente sempre foi. O que era verdadeiro e o que tinha sido máscara? A única certeza, agora, é que o homem, fosse quem fosse, era real e batia com força e sem parar. Como não chorar de dor? Dor no corpo e na alma. Impossível reagir ou revidar. Dói tudo. É assim mesmo. O que dizer amanhã? Perguntas virão. Mesmo que não verbalizadas, estarão na boca de todos. Perguntas como vômito. Se ao menos soubesse a razão...
Na manhã seguinte – melhor tivesse morrido –, olhos de quem não dormiu e também de quem apanhou muito. Marcas por todo o corpo, por dentro e por fora. Mesmo assim, café posto, voz fina e quase um sussurro: - por quê? A resposta sabida ou imaginada:
- Para que jamais faças igual! Que te sirvas de lição! Para que jamais ouse! Para que sempre te lembres das dores em teu corpo. Para que jamais ouses pensar. Para que esqueças o que viu. Para que a cena se apague de tua mente.
Uma surra preventiva. A turba de homens comemorou. Ele é o melhor de nós. Corta o mal antes mesmo da raiz. Não permite, aliás, que a semente germine. Outras mulheres também riram. Todos os homens riram. Namorados e namoradas também riram. Noivos. Toda a cidade. Isto sim! Pronto, esta jamais ousará. Lembrará para sempre. Jamais abandonará seu posto de mulher fiel, obediente e honesta. Apanhou antes mesmo de errar! Que sirva de exemplo para todas!
No corpo, marcas e dores. Na alma, nada. Nem tristeza, nem alegria, nem saudade, nenhum sentimento desses que só se sente. Apenas silêncio e as dores sentidas e não sentidas no corpo. Sonhos tolhidos antes mesmos de serem sonhados. A felicidade entristecida antes de qualquer riso. Sabores, odores e tatos partidos antes de sentidos. A vida morta antes de vivida. Olhares cegados antes de correspondidos. Resta a vida nua e sem vida. Resta esta vida para ser vivida assim mesmo. É assim mesmo!
Na mente do homem, certamente, uma grande confusão. Minha mulher é minha. Meu amor é maior. Nada pode ser maior do que ele. Não posso permitir felicidade alheia maior do que a minha. Só a mim pode fazer feliz minha mulher. Sim. Importa o que dizem e o que pensam os outros. Não. Nada mais me importa. Isto tudo é insuportável. É insuportável ao homem a mistura do dito e o não dito. O pensado e o não pensado. O querido e o não querido. Bateu em quem, finalmente? Na mulher, na raiva, no ciúme, na inveja, em si mesmo? Perguntas difíceis e respostas mais difíceis ainda.
Agora lembra, também em busca de razões, como flashes rápidos, a cada murro e a cada chute, as imagens se misturando, ora reais, ora abstratas, em sua mente. Como se em transe, vê o homem que batia trocando de lugar e de papel com o homem que beijava e gozava na outra mulher; o homem que batia trocando de lugar e de papel com a mulher que amava e beijava o outro homem; a mulher que apanhava trocando de lugar e de papel com a outra mulher que amava e gozava com outro homem; a mulher que apanhava representando todas as mulheres do mundo amando e gozando com todos os homens do mundo. Ora, quem era, finalmente, o homem que batia?
São passados muitos anos e continuo pensando sobre este caso. Penso no fato da surra, é claro. Penso muito também, talvez até mais, nas razões da surra e em todos os conflitos daí decorrentes. Por que razão um homem surra uma mulher que diz ser sua? Por que antecipa o irreal, a possibilidade sequer cogitada, o devir incerto, a ameaça do nada e, levado pelo ódio – que pensa ser amor – surra a mulher que diz ser sua? Por que se define o ainda não acontecido como crime e por que se deve punir o não acontecido que alguém define como crime? Se o não acontecido ainda não aconteceu, como interpretá-lo como crime? Por que punir a possibilidade do prazer? O que fazer, então, com os desejos e prazeres contidos, sob ameaça de surra? Por que se deve apanhar preventivamente? Por fim, em que pensavam e em que não pensavam, o homem que batia e a mulher que apanhava, no momento da surra? São essas inquietações angustiantes que me fazem lembrar do Direito.
Sobre isto, preciso pensar mais para continuar escrevendo. Isto vai ser outro dia. Preciso relacionar os personagens dessa história com nós mesmos, com os outros, com a liberdade, nossos desejos, medos, a repressão, a lei, o Direito e a Justiça. O desafio é imenso: como afastar o Direito da força e do castigo e aproximá-lo da leveza e do amor pelo outro? 
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), 
uma noite fria e chuvosa, junho de 2011.
 
*   

domingo, 19 de junho de 2011

Dá-lhe, STF: o Brasil está mais Leila Diniz!

Dora Martins e Gerivaldo Neiva, em Belém (PA), durante o Fórum Mundial de Juízes



STF e a Marcha da Maconha


Dora Martins, Juíza de Direito,
integrante da Associação Juízes para a Democracia
 (AJD), 16.06.2011

Clique aqui para ouvir na voz da autora


Leila Diniz morreu há 39 anos, em 14 de junho de 1972, com 27 anos de idade, e em seu curto e fértil tempo de vida, fez revolução. Desafiou o que na época se chamava “a moral e os bons costumes”. Leila para sempre Diniz, como disse Carlos Drummond de Andrade, não tinha meias medidas, nem meias palavras, punha a boca no trombone e exercia com alegria seu direito de se expressar livremente.
Ela não foi torturada ou presa por isso, mas recebeu um cala-boca da censura e respondeu a vários processos judiciais. Leila Diniz, por certo, gostaria de estar aqui hoje, neste momento em que o Supremo Tribunal Federal cumpre seu papel maior de garantidor das regras constitucionais e decide que sim, que qualquer cidadão tem o direito de se expressar publicamente, através de manifestações coletivas e pacíficas em defesa de suas ideias e seus desejos.
A conhecida “Marcha da Maconha” vinha sofrendo, aqui e acolá, Brasil afora, enorme resistência do Estado policial e do Poder Judiciário, sendo ela interpretada como incitamento ao uso de entorpecente ou como apologia ao crime. Nada disso. Dizer que sou a favor ou contra, discutir o problema de saúde pública e da violência que estão vinculadas ao comércio ilícito da droga, nada mais é do que direito do cidadão que vota, que paga seus impostos e que pensa, reflete e quer discutir suas questões mais prementes.
A violência que tanto magoa a sociedade atual e que tanto se quer reprimir e solucionar está na raiz da discussão sobre a questão das drogas. Quem tem medo da conversa, do diálogo, do pensamento plural? Quem tiver, que se cale agora, pois quem tinha que dizer o direito, o fez. O STF julgou por unanimidade ação promovida pela Procuradoria Geral da República, na qual se pleiteou interpretação da lei penal de modo a não impedir a realização de manifestações públicas em defesa da legalização de drogas.  E o STF entendeu que defender a legalização das drogas não é fazer apologia a um fato criminoso. E, os Ministros foram unânimes em destacar a relevância do direito à  livre manifestação do pensamento.
Falar sobre políticas de droga, querer discutir e mudar as leis não é ato criminoso, não é incitamento ao consumo de droga. O Ministro Celso de Mello, em belíssimo voto, ponderou que “o debate sobre abolição penal de determinadas condutas puníveis pode ser realizado de forma racional, com respeito entre interlocutores, ainda que a ideia, para a maioria, possa ser eventualmente considerada estranha, extravagante, inaceitável ou perigosa”.  E a Ministra Carmem Lucia Antunes Rocha, por seu lado, festejou o direito de se fazer manifestações públicas e lembrou a fala de um jurista americano que disse que “se, em nome da segurança, abrirmos mão da liberdade, amanhã não teremos nem liberdade e nem segurança”. É isso ai! E podemos comemorar: o Brasil, hoje, está mais Leila Diniz!
Texto e áudio publicados na Radioagência NP

 


Fonte: Blog Gerivado Neiva

sexta-feira, 17 de junho de 2011

O judiciário como empresa e cliente de TI: alimentando monstro?

Chaplin, em Tempos Modernos
O judiciário como empresa e cliente de TI[1]: alimentando
 monstro?

Gerivaldo Neiva, Juiz de Direito, membro da
 Associação Juízes para a Democracia (AJD),
 15.06.2011.
 
Gerivaldo Neiva *
O Tribunal de Justiça apresentou aos juízes baianos, na última sexta-feira (10/06), o Sistema de Automação da Justiça (SAJ). Trata-se de um sistema desenvolvido pela empresa
Softplan e adquirido pelo TJBa, com dispensa de licitação (
Declaração de Inexigibilidade de Licitação nº. 18/11, publicada no Diário do Poder Judiciário de 18 de março de 2011), pelo “valor global estimado de R$ 39.082.000,00”, incluindo a implantação e suporte, conforme Instrumento de Contrato n° 17/11-S, publicado no Diário do Poder Judiciário de 06 de abril de 2011.
Segundo informações da Softplan, este sistema já está implantado em oito estados do país, representando mais de 60% dos processos que tramitam na justiça comum, em mais de 500 comarcas. Garante ainda a Softplan: 70% mais agilidade na tramitação de processos digitais em relação aos tradicionais, 90% de redução no tempo de atendimento a advogados e partes e 98% de redução no tempo de ajuizamento de processos de execução fiscal em meio eletrônico. Clique aqui para visitar o site da Softplan e conhecer mais sobre o SAJ.
Além do SAJ, a Softplan também oferece soluções para outros ramos, a saber: Solar – solução integrada para gestão pública; Sienge – o software para a indústria de construção; Sider – solução integrada para gestão de departamentos de infraestrutura, transportes e obras; SAFF – solução para administração física, financeira e contábil de programas cofinanciados por organismos internacionais. Assim, para a Softplan, as soluções se misturam (justiça, gestão pública, construção civil, transportes, obras, administração, contabilidade...) e o Poder Judiciário é apenas mais um cliente em TI.
Não tenho a menor dúvida da necessidade modernização do Poder Judiciário e informatização do sistema de gerenciamento e acompanhamento dos processos. Em que pese esta certeza, tenho comigo ainda algumas questões não resolvidas sobre isto.
- O judiciário baiano, sem licitação e por mais de 39 milhões de reais, tornou-se cliente de uma empresa que já “gerencia” mais de 60% dos processos judiciais do país;
- O sistema prevê a eficiência e rapidez na solução dos litígios como se este “meio” (eficiência e rapidez) fosse o “fim” da justiça;
- Por ser tão eficiente e rápido, o sistema necessita cada vez mais de litígios para serem “operacionalizados”, sob pena de inviabilizar a aferição de sua eficiência;
- De tão eficiente, o sistema é o protagonista do andamento do processo, sujeitando aos seus caprichos o Juiz e o Processo Civil;
- Definitivamente, o Juiz e os servidores do Poder passam da condição de “operadores” do Direito (nomenclatura já questionada) para operadores do sistema de automação judicial. (uma sugestão de sigla: OSAJ);
- Mediação de conflitos e Justiça Restaurativa não interessam ao sistema, pois seu alimento principal é o litígio;
- Para o sistema, portanto, interessa maior número de litígios resolvidos (?) e o surgimento de outros litígios de decorrentes da resolução (?) do primeiro;
- Para se adequarem, os escritórios de advocacia necessitam também de investimentos em TI, equipamentos e qualificação de seus funcionários. Neste caminhar, não vai demorar e também as faculdades de Direito terão disciplina específica em TI e Judiciário ou como se tornar um bom OSAJ;
- Por fim, a quem interessa transformar o judiciário em máquina de operacionalizar litígios e quanto custa mediar conflitos e quanto custa solucionar litígios decorrentes desses conflitos não mediados?
Com tenho dito, o normativismo tomou as ruas e engoliu o Direito, sobrevivendo da crescente judicialização dos conflitos e sua transformação em litígios. Este fato, de sua vez, tem agravado sobremaneira as relações pessoais, sociais e institucionais com a falta de espaços de medição desses conflitos. Assim, não se dialoga mais em família ou com vizinhos, pois tudo será remetido à apreciação do Juiz, cuja mesa está se transformando em um imenso divã dos conflitos da sociedade em crise.
Ora, pensar em solução que possibilite cada vez mais a absorção dos litígios pelo judiciário, sem risco de implodir, ao invés de favorecer a mediação do conflito que o antecede, interessa a quem? Será que não estamos alimentando um monstro que necessita exatamente de litígios para sobreviver? E, por fim, até quando a sociedade, antes de se autodestruir, terá condições de gerar litígios para este monstro?
Sendo otimista e acreditando apenas na otimização do trabalho com os recursos tecnológicos, lembrando do “Direito à Preguiça”, de Paul Lafargue, se este sistema não me tornar seu escravo e OSAJ, talvez sobre um tempo, depois de “operacionalizar” os processos da Vara, para ser Magistrado de verdade.


[1] No jargão informatiquês: Tecnologia da Informação. Na enciclopédia Wikipédia: “A Tecnologia da Informação (TI) pode ser definida como um conjunto de todas as atividades e soluções providas por recursos de computação. Na verdade, as aplicações para TI são tantas - estão ligadas às mais diversas áreas - que existem várias definições e nenhuma consegue determiná-la por completo”.
 
*Gerivaldo Neiva é Juiz de Direito na Bahia e membro da Associação Juízes para a Democracia.