sexta-feira, 29 de abril de 2011

Uma semana em Moçambique

por Vladimir Aras*

“Milhões de braços, uma só força” diz o refrão do hino nacional moçambicano. A experiência de uma semana de trabalho em Moçambique foi enriquecedora e interessante. Chegamos à capital, Maputo, em 10/abr, num voo da South African Airlines (SAA), que partiu de Guarulhos com destino a Joanesburgo, na África do Sul. A conexão regional fizemos com as Linhas Aéreas de Moçambique (LAM). O grupo de instrutores enviado pela Escola Superior do Ministério Público da União – ESMPU ficou hospedado no Hotel Cardoso, na cidade alta, de onde se tem uma bela vista da capital, cidade de mais de um milhão de habitantes.

O programa de capacitação de magistrados moçambicanos, viabilizado pela Agência Brasileira de Cooperação/MRE, pela ESMPU e pelo Centro de Formação Jurídica e Judiciária (CFJJ) de Moçambique, transcorreu a contento. Membros do Ministério Público Federal do Brasil cuidaram de temas como crime organizado, lavagem de dinheiro, corrupção e tráfico de pessoas, armas e drogas.

Dei aulas sobre organizações criminosas e instrumentos de persecução para magistrados do Ministério Público e magistrados judiciais daquele país. Lá, juízes e procuradores prestam o mesmo concurso de ingresso na “Magistratura” e começam estudando juntos no Centro de Formação Jurídica e Judiciária (CFJJ).

Segundo o art. 234 da Constituição de 2004, “O Ministério Público constitui uma magistratura hierarquicamente organizada, subordinada ao Procurador-Geral da República.” Atualmente, o cargo é ocupado pelo juiz Augusto Paulino. O PGR tem mandato de 5 anos e todos os anos deve fazer um discurso à Assembleia da República (o congresso deles) sobre o estado geral da Justiça no país. Está aí uma coisa que deveríamos copiar…

No grupo de 20 alunos da primeira turma havia juízes, procuradores, desembargadores, e, entre eles, chefes de unidades judiciais importantes, como o Gabinete Central de Combate à Corrupção (GCCC) e a Procuradoria da Cidade de Maputo.
A Embaixada brasileira cedeu o Centro Cultural Brasil-Moçambique, na Av. 25 de Setembro, esquina com Av. Karl Marx, para a sede do curso. O centro fica localizado numa região bem movimentada da capital.
Maputo é uma cidade muito peculiar. As lembranças do período de influência marxista estão por toda a parte. A Av. Vladimir Lênin se encontra com a Av. Patrice Lumumba. Mas hoje a presença da China é mais vistosa do que outrora foi a da União Soviética. Vieram do Banco da China os recursos para a construção da nova sede da Procuradoria-Geral da República, um dos mais bonitos e bem estruturados prédios públicos de Maputo. Parte da mão-de-obra empregada na edificação também foi chinesa.

Os moçambicanos saíram há duas décadas de uma guerra civil muito dura entre a “direita” (Renamo) e a “esquerda” (Frelimo), que hoje são os partidos dominantes em Moçambique. Os conflitos ideológicos começaram logo após a independência em 1975 e só cessaram em 1992. Em algumas regiões do país ainda há milhares de minas terrestres plantadas, uma triste e perigosíssima heranças da guerra. A Constituição de 2004 chega a fazer referência aos mutilados, assegurando aos deficientes em razão da guerra direitos especiais previstos no art. 16. Há um órgão, o Instituto Nacional de Desminagem (IND), encarregado de localizá-las e desarmá-las.

Entretanto, apesar do longo histórico de conflitos, há baixíssima criminalidade nas ruas, o que pudemos comprovar pelas estatísticas governamentais e na prática, porque caminhamos tranquilamente pela capital, sem aborrecimento com trombadinhas ou assaltantes. Os crimes mais graves e violentos costumam acontecer no interior e no litoral do país. Pessoas suspeitas de bruxaria (feitiçaria), roubos ou estupros são linchadas por turbas. Leia mais sobre isto no blog do sociólogo Carlos Serra.


Curiosamente, a bandeira do país é a única do mundo que tem um fuzil como um de seus símbolos heráldicos: um AK-47 Kalashnikov , de fabricação russa, do tipo usado na guerra adorna o pavilhão moçambicano. Serve ali para representar a luta armada (defesa nacional). A arma se cruza com uma enxada, representativa da agricultura, e ambas estão sobrepostas a um livro. Esta descrição minuciosa consta do art. 297 da Constituição.

Habitadas por tribos autóctones africanas, ocupadas por mercadores árabes e colonizadas por conquistadores portugueses, nas terras moçambicanas há hoje expressivas comunidades da Índia e da China. Fala-se português corrente, num jeito mais parecido com o de Portugal do que com o nosso. Mas entre pessoas da mesma etnia ou da mesma região, os locais usam seus idiomas próprios. São mais de 20 línguas maternas, incluindo o zulu, a maior parte delas do grupo banto (ou bantu) e muitas delas ágrafas (sem escrita própria). No sul do país, usa-se muito o changana ou xiChangana. O português é a língua oficial e da unidade nacional.

Moçambique é um dos membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que reúne também Portugal (capital Lisboa), Brasil (capital Buenos Aires, oops, Brasília), Angola (capital Luanda), São Tomé e Príncipe (capital São Tomé), Cabo Verde (capital Praia), Guiné-Bissau (capital Bissau) e Timor Leste (capital Dili), e, em breve, a Guiné Equatorial (capital Malabo), nação africana que no ano de 2010 tornou o português uma de suas três línguas oficiais. Teoricamente, Macau, região administrativa especial da República Popular da China, também poderia fazer parte deste grupo.

Moçambique também é membro dos PALOP – organização dos Países Africanos de Língua Portuguesa. Clique aqui para conhecer o projeto LegisPalop, que integra a base de dados oficial de legislação, jurisprudência e doutrina dessas nações em desenvolvimento.
Os moçambicanos veem muita TV brasileira (Globo e Record), o que contribui para a expansão do idioma comum. A Record adquiriu em 2010 a TV Miramar de Maputo, que retransmite parte de sua programação. Nos seus gostos e costumes, os moçambicanos lembram muito os brasileiros: são alegres e receptivos como os baianos. Tal e qual Salvador, Maputo fica numa baía e tem uma parte alta e uma parte baixa, onde estão o porto e o comércio. A capital tem uma bela fortaleza, que remete à presença portuguesa. O Brasil está muito presente em programas de cooperação e também nos investimentos da Vale, que explora carvão mineral, e da Petrobras, que prospecta petróleo.

O custo de vida é muito baixo. O turismo, especialmente no norte do país, está florescendo. No norte há resorts e praias lindíssimas, na região das Ilhas Quirimbas, na Província de Cabo Delgado.

Um dos maiores parques de vida selvagem do mundo fica bem perto de Maputo, a uns 140 km a noroeste. É o Kruger Park, situado na vizinha África do Sul. Esta proximidade com a potência econômica do continente favorece os negócios e influencia costumes, inclusive o modo de dirigir. Lá vigora a mão inglesa. Volantes do lado direito. Carros do lado esquerdo. Em conversas coloquiais os moçambicanos usam muito a palavra “iá”, em lugar do “sim”, por influência do inglês “yeah”, presumo.

A culinária do país é muito rica. Abundam os frutos do mar e os mariscos. Provei um prato chamado matapa (uma espécie de maniçoba de camarão) e uma feijoada com feijões grandes e carne gordíssima. A febre amarela e a malária são doenças muito comuns. Para a primeira, existe a vacina. Para a segunda, reza.

Como se fossem patologias, a corrupção no setor público e o tráfico de pessoas são graves problemas. Se antes os africanos eram traficados como escravos para o eito na América, agora são traficados como mercadorias sexuais, especialmente mulheres e crianças, rumo à Europa e ao extremo sul do continente. Muitas das riquezas do país e de seus dramas são retratados pelo seu maior romancista, Mia Couto.

Os brasileiros que estivemos em Maputo (éramos quatro) compuseram o primeiro grupo de capacitação internacional da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU), que tem sede em Brasília. Fomos lá para abrir caminho para os próximos dois anos do projeto e para ajudar um povo irmão a aperfeiçoar seu sistema de justiça criminal. Atravessamos o Atlântico e nos acercamos do Índico. A viagem foi longa. Mas moçambicanos e brasileiros não estão tão distantes assim…

Veja neste link a matéria no site da ESMPU sobre o evento em Maputo: “Encerrada em Moçambique primeira fase de capacitação jurídica para magistrados e membros do Ministério Público”.

* Vladimir Aras é Procurador da República e Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.



quarta-feira, 27 de abril de 2011

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DOS ÍNDIOS

Mobilização dos Povos Indígenas do Mato Grosso do Sul


Egon Dionísio Heck *
 
"Nós Guarani somos um povo muito pacífico, mas não desistimos de lutar pelos nossos direitos, nossas terras, um futuro melhor para nossos filhos e netos...” (Liderança Kaiowá Guarani, acampada).

Apoio a Ypo’i
Hoje inicia mais uma Grande Assembléia Kaiowá Guarani. Mais de 500 lideranças desse povo estão se mobilizando em todo o cone sul do Mato Grosso do Sul. O Conselho da Aty Guasu havia definido a realização dessa Assembléia em Ypo’i, como forma concreta de apoiar a luta desses seus irmãos pelo seu tekohá, terra tradicional. Seria uma maneira de novamente dizer ao Brasil e ao mundo, que a angustia de um pouco mais de uma centena de indígenas, continua: o cadeado continua fechado, o corpo de Rolindo continua desaparecido, o processo e julgamento dos responsáveis pelo assassinato dos professores Guarani, Genivaldo e Rolindo, continua parado. Porém a solidariedade nacional e internacional ao direito dessa comunidade indígena tem sido ampla, impedindo com que sejam submetidas novas violências e mais sofrimentos.

As inúmeras comunidades Guarani Kaiowá que continuam acampadas nas beiras das estradas, cansaram de esperar. Já fazem dois anos do término do prazo para que fossem publicados os relatórios de identificação de todas as terras indígenas desse povo. Até hoje não se tem notícia sequer da entrega dos relatórios para apreciação e encaminhamento da presidência da Funai.
A aty Guasu será o momento privilegiado para discutir e tomar decisões com relação à luta pela terra, contra a violência e pelo fim da impunidade. Mas será também a oportunidade de avaliar a caminhada organizativa das comunidades e do conjunto do povo. Nela irão socializar as importantes lutas e conquistas, como a realização do Encontro dos Povos Guarani da América do Sul, na Aldeia de Jaguaty, no Paraguai, o julgamento e condenação dos assassinos de Marcos Veron, acontecido em São Paulo no final de fevereiro.
 
Jatayvary – vitória contra a cana
Dentre as portarias assinadas pelo Ministro da Justiça e publicadas no Diário Oficial da União em 25 de abril de 2011, está a Terra Indígena Jatayvary, no município de Ponta Porã. Os Kaiowá retornaram a esse tekohá na década de noventa. Em 2000 a Funai fez o registro 08620.001862/2000, a partir do qual se iniciou o processo de reconhecimento dessa terra indígena. Em 2005 foi criado o Grupo de Trabalho parar identificação da área. Foram vários anos de tortuoso caminho até chegar à publicação do relatório de identificação. A reação ao reconhecimento de terra indígena, por parte dos interesses do agronegócio e da agroindústria da cana, foram tão violentos que chegou à inusitada decisão judicial de requerer todos os documentos originais do processo de identificação.
Todas as contestações à identificação foram documentalmente demonstrados pela Funai, sendo agora publicada a portaria de identificação, a partir da qual o governo se compromete à fazer a demarcação física dos aproximadamente 8.800 hectares dessa terra indígena.
Essa é uma das aldeias sitiadas pela cana. Em vários momentos a comunidade Chegaram ao extremos de afirmarem que os plantadores de cana haviam dito que iriam cercar a comunidade com cerca elétrica. A empresa multinacional BUNGE instalou, recentemente uma usina socroalcooleira na região.
Agora a comunidade pode respirar com um pouco mais de paz, enquanto prossegue o processo de regularização de sua terra.

À Sombra de um Delírio Verde
Hoje à noite estará sendo lançado oficialmente o vídeo documentário "à Sombra de um Delírio Verde”, que traz para o debate a questão dos agrocombustíveis, e de maneira especial o impacto da cana sobre o meio ambiente e populações Kaiowá Guarani do Mato Grosso Sul.
Um dos responsáveis pelo documentário, o jornalista Cristiano Navarro, estará presente para o debate por ocasião do lançamento vídeo, dentro da programação da 2ª. Semana dos Povos Indígenas promovido pela OAB-MS. Na sinopse publicada no site, afirma que " Na região sul do Mato Grosso do Sul, fronteira com Paraguai, a etnia indígena com a maior população no Brasil luta silenciosamente por seu território para tentar conter o avanço de poderosos inimigos.Expulsos pelo contínuo processo de colonização, mais de 40 mil Guarani Kaiowá vivem hoje em menos de 1% de seu território original. Sobre suas terras encontram-se milhares de hectares de cana-de-açúcar plantados por multinacionais que, em acordo com governantes, apresentam o etanol para o mundo como o combustível "limpo” e ecologicamente correto.Sem terra e sem floresta, os Guarani Kaiowá convivem há anos com uma epidemia de desnutrição que atinge suas crianças. Sem alternativas de subsistência, adultos e adolescentes são explorados nos canaviais em exaustivas jornadas de trabalho. Na linha de produção do combustível limpo são constantes as autuações feitas pelo Ministério Público do Trabalho que encontram nas usinas trabalho infantil e escravo.Em meio ao delírio da febre do ouro verde (como é chamada a cana-de-açúcar), as lideranças indígenas que enfrentam o poder que se impõe muitas vezes encontram como destino a morte encomendada por fazendeiros”.
O vídeo também estará sendo apresentado na Aty Guasu, em Arroyo Korá, com a presença de um dos realizadores do documentário, Cristiano Navarro.

Povo Guarani, Grande Povo
Dourados, 27 de abril de 2011.

* Egon Dionísio Heck é Assessor do CIMI no Mato Grosso do Sul
 
Fonte:Adital
 
 
 

segunda-feira, 25 de abril de 2011

OS JUIZES NO ENCONTRO DOS BLOGUEIROS

Liberdade x tutela na web:
a regra básica do conservadorismo
é que toda liberdade é perigosa

Marcelo Semer*




Em linhas gerais, segue abaixo o texto em que me baseei para o debate Proteção Jurídica na Blogosfera, no I Encontro Estadual de Blogueiros Progressistas de São Paulo, que aconteceu de 15 a 17 de abril, na Assembleia Legislativa.


Ser blogueiro, e ainda mais, progressista, não é tarefa fácil para um juiz de direito.
Depois de muito tempo encastelados no que se acostumou chamar metaforicamente de “torres de marfim”, os juízes não são reconhecidos em seu papel de cidadãos.
Somos tragados por um duplo preconceito, daqueles que se imaginam apenas “autoridades” e de quem tem dificuldade em nos enxergar como cidadãos comuns, com direito a expressar ideias e defender causas. É o que somos, todavia.
Da minha parte, fico feliz por não sê-lo sozinho, mas acompanhado dos colegas da Associação Juízes para a Democracia, que neste maio próximo, comemora seus vinte anos de existência.
Nesse período, não sem embates, debates e muitos preconceitos, a AJD vem tensionando o exercício da cidadania do juiz, ao mesmo tempo em que faz profissão de fé na independência judicial, na construção de uma democracia também material, que represente a emancipação dos menos favorecidos.
Tal como blogueiros progressistas, que reconhecem e contestam a excessiva concentração da mídia no país -e os riscos do pensamento hegemônico que isso traduz, também estabelecemos o contraponto à um Judiciário tradicionalista, habitualmente conservador e elitista, abrindo espaços diante do costumeiro corporativismo da magistratura.
Penso que vimos contribuindo para o debate da independência do juiz, inclusive dentro do próprio do poder, e para a noção de que exercitamos fundamentalmente um serviço público. A ideia de controle social do poder (porque o serviço ao público deve ser por ele controlado) mantem laços com nossos objetivos estatutários.
Participar, portanto, de um evento que procura discutir e defender a democratização dos meios de comunicação, em prol de um pluralismo indispensável à própria democracia, juntamente com representantes de outras entidades da sociedade civil, faz todo o sentido.
É certo que o debate sobre a democratização dos meios de comunicação está adentrando na agenda política do país, depois de muitos anos interditado, inclusive como forma de abordar a excessiva concentração dos empreendimentos de mídia, que se repetem nos mais variados segmentos.
Penso que este é o debate que, inclusive, dá consistência ao movimento crítico dos blogueiros.
Ainda assim, não me parece exageradamente alvissareira a expectativa de que novos
empreendimentos de comunicação, televisões, rádios, jornais ou revistas possam despontar em futuro próximo, diante das conhecidas dificuldades financeiras.
É por este motivo que o espectro libertário da web parece ser, hoje em dia, o mais promissor instrumento para romper a concentração, na direção a um pluralismo sustentável.
Outros meios alternativos não tiveram as mesmas oportunidades nem foram favorecidos pelas circunstâncias.
Rádios-livres caminharam na linha da desobediência civil e recebem como resposta até hoje forte repressão.
TVs comunitárias se adequaram a espaços autorizados, acomodados em nichos não-competitivos das transmissões a cabo –afinal, a abertura dos canais pagos em nada diminuiu a concentração na mídia, mantendo-a na mão de seus principais proprietários.
Na internet, no entanto, existe a possibilidade concreta de uma atuação que ao mesmo tempo não é transgressora e tampouco submissa, encastelada em pequeno esquadro.
Trata-se, ainda, de uma alternativa de baixo custo e que consegue ademais agregar todas as demais formas de comunicação, como imagens de televisão, sons de um rádio e palavras de jornais e revistas.
Com a web, cada blogueiro ou membro de uma rede social é em si mesmo um potencial meio de comunicação em massa –e não raro, mensagens de uma nota só se espalham de forma viral até emergirem na grande imprensa como sucessos.
Vivemos, portanto, um momento especial. Nunca antes na história do país, ou melhor do planeta, tantos puderam romper uma estrutura quase cartelizada com tão pouco.
Mas sejamos sinceros: quem imaginaria que essa liberdade seria exercida sem nenhuma tentativa de controle? Quem suporia que este espaço e essa liberdade seriam conquistadas sem sofrimento?
Poder não se fratura sem dor, o que resulta na formatação de inúmeros instrumentos para exercer o controle dessa liberdade recém adquirida.
Diria que o controle se exerce, fundamentalmente, em três camadas.Primeiro, a disputa pela infraestrutura. Pouco mais de 40% dos brasileiros tem acesso à Internet. Não será apenas pela ação das empresas privadas que se superará o atraso da banda-larga inclusiva. Sem apoio do poder público, a parcela mais carente da população, incapaz de gerar lucros de suficiente motivação, continuará afastada da rede e de sua utilização cotidiana.
Isso sem contar as seguidas ameaças de construção de um sistema de dupla-via no trânsito mundial de dados, capaz de distinguir de um lado grandes transações financeiras e macro-provedores rodando em autoestradas e de outro pequenos blogueiros em estreitas vicinais.
Não por outro motivo, a declaração cibernética dos direitos humanos, que se formata em torno da ONU, aponta em sua regra oitava: “Todos os indivíduos devem ter acesso universal e aberto ao conteúdo da Internet, livre de priorização discriminatória, de filtragem ou controle de tráfego por motivos comerciais, políticos ou outros.”
A segunda camada do controle se exerce pela deslegitimação do espaço. Não é incomum que órgãos de imprensa reputem a comunicação pela web como não confiável.
Leviana, pois qualquer um pode nela escrever, sem controle de qualidade ou conteúdo; promíscua, porque se misturam atores de níveis e origens diversos e em grande parte desconhecidos; perigosa, diante do anonimato e da frequência constante de jovens pouco informados sobre os riscos a que se submetem.
A impressão em papel de uma opinião por um jornal ou uma revista semanal não a torna mais “confiável” do que a expressa em blogs –se mais não fosse porque os próprios meios de comunicação tradicional também tomaram seus lugares na web.
A informação pela Internet é mais abundante e seus atores muitas vezes sem prestígio ou reputação de grande mídia, mas a habilidade de filtrar partidarismos ou vulgaridades (que se impõe dentro da web) não pode deixar de ser necessária também fora dela.
E em relação aos perigos, poucos podem contestar que crimes acontecem em muito maior intensidade fora da rede do que dentro dela –ainda que se abram, por meio internet, algumas funestas oportunidades.
Quanto mais cedo e quanto maior for a familiaridade das pessoas com a rede, a partir da escola, maior será a facilidade para reconhecer e superar os riscos. Só o conhecimento e a experiência proporcionam amadurecimento.
Por fim, a terceira camada do controle é justamente a compressão dos direitos, a consequência mais direta da contenção da liberdade: o estabelecimento de limites, regras e punições. Algumas delas expressas, outras apenas implícitas.
Demissões trabalhistas por tweets postados já estão se tornando regras. Uma enorme dificuldade de conviver com o duplo papel de trabalhadores e cidadãos –dificuldade dos patrões, sobretudo. Processos judiciais contra blogueiros, reestabelecendo, de certa forma, mecanismos de censura (inclusive por parte da própria imprensa) já despontam no horizonte. O crescimento da regulamentação pela justiça eleitoral tende a impor maior controle à atividade política na web –na eleição que passou, o TSE admitiu pela primeira vez o direito de resposta no twitter para a divulgação de mensagem aos seguidores do ofensor.
E, sobretudo, discute-se a criação de uma teia punitiva, como o projeto Azeredo, impondo a tutela penal e o vigilantismo, antes mesmo da criação de uma estrutura civil, o chamado marco regulatório. Punições que precedem a delimitação dos próprios direitos que se supõem violados.
Trata-se aqui de compreender como funcionam dois dos pilares históricos do conservadorismo.
Toda a liberdade é perigosa e precisa de controle.
O direito penal é um eficaz instrumento de tutela da propriedade privada.
Assim se criam as sociedades de controle e de excessiva punição.
Uma rápida visualizada em nosso Código Penal permite conhecer a supervalorização da tutela da propriedade privada.
Um furto de rádio de carro é tão grave quanto a violenta agressão que deixa seqüelas permanentes na vítima. Uma ameaça de roubo com um dedo debaixo da camisa é mais severamente punida que a corrupção em uma grande licitação. E até o sequestro é um crime leve, quando se limita à privação da liberdade -só se torna imensamente grave se envolver pedido de resgate.
Não estranha que uma lei que discipline atividades na Internet basicamente se restrinja a estabelecer crimes, fundada na necessidade de proteger, sobretudo, a segurança bancária e direitos dos criadores das tecnologias. Mais cedo ou mais tarde estaremos reproduzindo a discussão de patentes que hoje se trava no campo dos medicamentos.
Mesmo quando se trata de direitos de autor, a lei penal também é profundamente desequilibrada. Sou escritor e se alguém plagia um livro meu devo contratar um advogado para ajuizar ação penal privada; mas para processar camelôs que vendem DVD’s piratas, as grandes empresas cinematógraficas daqui ou de fora têm o aparato do Estado à sua disposição.
A primeira recomendação para lidar com esses instrumentos de controle que se formam é compreender que Internet não é “second life”.
O que fazemos e o que dissemos na web é passível de responsabilização, seja na violação do direito autoral, nos crimes contra a honra ou na propagação de preconceitos.
Embora muitos possam entender que criam um ‘avatar’ para seus posts ou tweets, é bom saber que a tecnologia que nos permite viajar aparentemente ocultos é a mesma que será usada para descortinar rastros e inutilizar esse anonimato pretendido.
Em resumo, aos blogueiros: a mesma responsabilidade que assumimos fora, também assumimos quando estamos na rede.
É certo, também, que estaremos em breve assistindo a uma maior incidência de censura na web.
A judicialização destes conflitos está fazendo com que juízes repristinem a censura prévia, vedada por disposição expressa na Constituição. Isso é feito por meio transverso da defesa da marca, da honra, da privacidade ou da reputação.
Pode-se questionar esse tipo de decisão, por representar uma mutilação da liberdade de expressão, cujo controle deveria se limitar a ser a posteriori.
Mas é fato que até o momento o próprio STF que chegou a fulminar a Lei de Imprensa, tratando-a como um entulho autoritário, não foi capaz de assumir a proibição da censura prévia -tangenciou a questão quando ela foi levada a plenário (caso Estadão).
Mas é importante entender, todavia, que ser contra a censura prévia não significa reconhecer a liberdade de expressão como um direito absoluto.
Não vivemos a Constituição de um artigo só.
A liberdade de expressão é direito fundamental, mas a dignidade da pessoa humana, uma das premissas da República.
O abuso na expressão, dentro ou fora da rede, é passível de punição, sendo de se destacar, em especial, a propagação de preconceito e o racismo, eis que a intolerância parece ver na web uma de suas principais estradas.
Liberdade não é álibi para a supressão de direitos humanos, mas justamente sua parceira.
A questão que se coloca, então, é: como reagir aos mecanismos de controle que, dependendo da medida, podem cercear a liberdade e esvaziar a livre navegação?
A primeira sugestão que lhes dou é exatamente o que se faz nesse evento: criação de uma cultura da inclusão, liberdade de expressão e proteção de direitos humanos.
Para isso, a multiplicação de debates como esses não são apenas importantes, mas imprescindíveis.
A segunda sugestão é pragmática. Ao mesmo tempo que blogueiros isolados podem romper bloqueios e se transformar em um autêntico meio de comunicação de massa, de outro lado, não passam de um indivíduo enfrentando interesses que podem atingir grandes corporações.
A criação de uma rede que para auxílio mútuo, seja como cooperativa ou como associação, com assistência técnica, jurídica e de empreendimento, tende a reduzir riscos e danos para todos.
Por fim, a melhor e mais definitiva forma de reagir ao controle é passar ao controle.
Ganhar a audiência, proporcionando um modelo que na prática substitua a concentração pela pulverização.
Essa revolução pode até ser menos sangrenta do que outras que já vimos, e certamente será, mas nem por isso menos árdua.
Creio que o principal caminho é manter as qualidades que nos diferenciam dos veículos tradicionais da mídia: agilidade, independência e solidariedade.
Temos, como principal vantagem, a ausência de concorrência. Televisões competem umas com as outras; o mesmo acontece com rádios, jornais e revistas.
Blogueiro não compete com blogueiro.
Blogueiro depende de blogueiro.
Nenhum blog vive sozinho na web. Ninguém chega a um blog sem passar por outro (ou por um perfil de rede social). O fato de que isolados somos pequenos se compensa com uma possibilidade veloz e ilimitada de disseminação.
O compartilhamento é a arma que nos sustenta e nos mantém firmes na rede.
Porque nossos blogs são acessados de outros, devemos abri-los para que outros sejam acessados pelos nossos e divulgar, sem receio de concorrência, outros blogs e perfis, pois o que buscamos é justamente a afirmação do pluralismo.
Só a disseminação é que faz os blogueiros fortes.
O mais interessante desta revolução é que os meios que empregaremos por ela são justamente aqueles que queremos ver implantados: inclusão e solidariedade.
E por isso que é tão bom fazê-la.

* Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo, escritor e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

O DUELO ENTRE A VIDA E MORTE

Leonardo Boff *
 
Num dos mais belos hinos da liturgia cristã da Páscoa, que nos vem do século XIII, se canta que "a vida e a morte travaram um duelo; o Senhor da vida foi morto mas eis que agora reina vivo”. É o sentido cristão da Páscoa: a inversão dos termos do embate. O que parecia derrota era, na verdade, uma estratégia para vencer o vencedor, quer dizer a morte. Por isso, a grama não cresceu sobre a sepultura de Jesus. Ressuscitado, garantiu a supremacia da vida.

A mensagem vem do campo religioso que se inscreve no humano mais profundo, mas seu significado não se restringe a ele. Ganha uma relevância universal, especialmente, nos dias atuais, em que se trava física e realmente um duelo entre a vida e a morte. Esse duelo se realiza em todas as frentes e tem como campo de batalha o planeta inteiro, envolvendo toda a comunidade de vida e toda a humanidade.

Isso ocorre porque, tardiamente, nos estamos dando conta de que o estilo de vida que escolhemos nos últimos séculos, implica uma verdadeira guerra total contra a Terra. No afã de buscar riqueza, aumentar o consumo indiscriminado (63% do PIB norte-americano é constituído pelo consumo que se transformou numa real cultura consumista) estão sendo pilhados todos os recursos e serviços possíveis da Mãe Terra.

Nos últimos tempos, cresceu a consciência coletiva de que se está travando um verdadeiro duelo entre os mecanismo naturais da vida e os mecanismos artificiais de morte deslanchados por nosso sistema de habitar, produzir, consumir e tratar os dejetos. As primeiras vítimas desta guerra total são os próprios seres humanos. Grande parte vive com insuficiência de meios de vida, favelizada e superexplorada em sua força de trabalho. O que de sofrimento, frustração e humilhação ai se esconde é inenarrável. Vivemos tempos de nova barbárie, denunciada por vários pensadores mundiais, como recentemente por Tsvetan Todorov em seu livro O medo dos bárbaros (2008). Estas realidades que realmente contam porque nos fazem humanos ou cruéis, não entram nos calculos dos lucros de nenhuma empresa e não são considerados pelo PIB dos países, à exceção do Butão que estabeleceu o Indice de Felicidade Interna de seu povo. As outras vítimas são todos os ecossistemas, a biodiversidade e o planeta Terra como um todo.

Recentemente, o prêmio Nobel em economia, Paul Krugmann, revelava que 400 famílias norte-americanas detinham sozinhas mais renda que 46% da população trabalhadora estadunidense. Esta riqueza não cai do céu. É feita através de estratégias de acumulação que incluem trapaças, superespeculação financeira e roubo puro e simples do fruto do trabalho de milhões.

Para o sistema vigente e devemos dizê-lo com todas as letras, a acumulação ilimitada de ganhos é tida como inteligência, a rapinagem de recursos públicos e naturais como destreza, a fraude como habilidade, a corrupção como sagacidade e a exploração desenfreada como sabedoria gerencial. É o triunfo da morte. Será que nesse duelo ela levará a melhor?

O que podemos dizer com toda a certeza que nessa guerra não temos nenhuma chance de ganhar da Terra. Ela existiu sem nós e pode continuar sem nós. Nós sim precisamos dela. O sistema dentro do qual vivemos é de uma espantosa irracionalidade, própria de seres realmente dementes.

Analistas da pegada ecológica global da Terra, devido à conjunção das muitas crises existentes, nos advertem que poderemos conhecer, para tempos não muito distantes, tragédias ecológico-humanitárias de extrema gravidade.

É neste contexto sombrio que cabe atualizar e escutar a mensagem da Páscoa. Possivelmente não escaparemos de uma dolorosa sexta-feira santa. Mas depois virá a ressurreição. A Terra e a Humanidade ainda viverão.


* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor.
 
 
Fonte: Adital
 
 
 

terça-feira, 19 de abril de 2011

RELATO SOBRE ESTÁGIO INTERDISCIPLINAR DE VIVÊNCIA

Alexandre Garcia Araújo (Xandó) *

Participei no período de 09 a 29 de Janeiro de 2011 do III EIV - Sergipe, Estágio Interdisciplinar de Vivência construído por estudantes e executivas de vários cursos (Agronomia, Direito, Medicina, História, Serviço Social, Biologia, Engenharia Florestal) em parceria com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. As pessoas que passaram a saber dessa experiência ficaram curiosas e me pediram para redigir um texto que relatasse um pouco do que passei, e do que é o EIV. Essa não é uma tarefa fácil, pois não envolve somente um relato de fatos, mas sim sentimentos, sensações e despertares. Ao ler este texto, tente abstrair um pouco dos pré-conceitos que todos nós trazemos, pois é justamente essa a intenção do EIV.

Meu nome é Xandó, sou estudante de Direito da UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia), e vou começar explicando porque eu quis participar do EIV. Tudo começa com o despertar. Milito no Movimento Estudantil, e percebi que a minha luta contra esse modelo opressor de sociedade, que mercantiliza e sucateia a educação, não estava descolado das demais mobilizações sociais. Sai de casa com a idéia de que passaria alguns dias assistindo aulas, depois iria para uma área de reforma agrária, e voltaria para contar ao resto do grupo como foi. Ledo engano. 

O EIV é um mecanismo pedagógico que faz com que o estudante, habituado com os frios bancos universitários, possa entender que a teoria apreendida durante vários anos, pouco (ou nada) tem a ver com a realidade do povo explorado, que não tem acesso uma vida digna. Três princípios norteiam o EIV: a parceria, que se dá na relação do Movimento Estudantil com os Movimentos Sociais Populares; a interdisciplinaridade, que propicia o diálogo entre as diferentes áreas do conhecimento, abrindo espaço para outros pontos de vista sobre determinados temas; e a não intervenção, que garante ao estudante dedicar-se apenas ao conhecimento da realidade vivenciada. (Trecho retirado do site da ABEEF – Associação Brasileira de Estudantes de Engenharia Florestal <http://abeef.wordpress.com/eiv-estagio-interdisciplinar-de-vivencia/>).

Assim, durante a primeira fase (formação), nós, 42 estudantes dos mais diversos cursos (das Relações Internacionais à Engenharia Civil), ficamos no Centro de Formação Quissamã – MST,discutindo sobre educação, movimentos sociais, saúde, reforma agrária, agro-ecologia, América Latina, etc. e pudemos perceber como todas essas questões estão interligadas e contribuem para a manutenção da ordem e poder na mão das elites dominantes.Também passamos por um momento de re-educação, pois se queremos compreender, e ser povo, não podemos separar o trabalho intelectual do trabalho manual. Assim,divididos em núcleos de base com 7 integrantes, cumpríamos tarefas como lavar banheiros, louça, panelas, limpar os espaços, dentre outras. Nosso dia começava às05:30 e só terminava às 23:00. Geralmente ultrapassávamos esse horário com violões e conversas sobre mais um dia que passava e a expectativa da vivência que se aproximava.

A cabeça pensa aonde os pés pisam! Após 8 dias, fomos enviados em duplas ou trios para assentamentos e acampamentos do Estado de Sergipe. Fui para o Assentamento Nove de Junho – sertão sergipano. O termo acampamento designa a fase em que os trabalhadores ainda estão na beira da pista, debaixo dos barracos, esperando a desapropriação da terra. Já o assentamento ocorre quando há a emissão de posse e as famílias passam a ter seus lotes. Os assentados do Nove de Junho tinham um ano de posse da terra, desta forma, muitos ainda moravam em barracos, não havendo água encanada e restrição do acesso à luz. Banho de cuia e necessidades no mato: passei 10 dias assim com o companheiro Diego, de Agronomia da UNEB Juazeiro. À base de muito cuscuz, coração de boi, e galinhadas, trabalhamos duro: capinamos, ajudamos a levantar um barraco de taipa,catamos lenha, tiramos terra de barragem, dentre outras atividades cotidianas da vida do campesino. Não estávamos ali como turistas, mas como amigos que iriam ajudar no que fosse necessário. Em poucos lugares fui recebido tão bem como ali. Fizemos questão de deixar claro que não éramos diferentes de ninguém. Estudamos em universidades e temos modos de vida diferentes, mas não sabíamos mais do que ninguém ali. Pelo contrário, cada conversa de fim de tarde era um aprendizado impar.

Conheci a cultura do sertanejo,e constatei mais uma vez como é sofrida a vida do povo brasileiro. Vi como uma fazenda que antes pertencia a uma só pessoa, mudou a vida de 53 famílias, dando-lhes a perspectiva de uma real mudança social. Abandonei aquele discurso bonito que aprendemos na universidade, que o povo é explorado e dominado, e que só a educação pode resolver isso. Entendi que somente quando nos reconhecemos enquanto classe trabalhadora, é que percebemos que também somos explorados, e que quando temos o privilégio de nos formar em escolas custeadas pelo povo, e não fazemos nada para mudar essa realidade, ajudamos a manter esse modelo. Não existe neutralidade. Se você sabe da situação e não faz nada você também toma uma posição, que é a de deixar tudo como está. Um rio nunca passa duas vezes no mesmo lugar. O meu rio mudou e eu também mudei. Hoje, arregaço as mangas e procuro fazer valer o investimento que a população brasileira fez em mim, buscando esperança e mudança social de verdade,para esse povo que tanto necessita.

JUVENTUDE QUE OUSA LUTAR, CONSTRÓI O PODER POPULAR!!!

(Vídeo do EIV-BA que fala um pouco sobre o estágio: <http://www.youtube.com/watch?v=PtKdCzTmqpY&feature=player_embedded>)
 
 
* Alexandre Garcia Araújo (Xandó), Estudante de Direito na UESB – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Coordenador do Centro Acadêmico Ruy Medeiros, Federação Nacional de Estudantes de Direito - FENED.
 

segunda-feira, 18 de abril de 2011

A doença chamada homem


Leonardo Boff *

Esta frase é de F. Nietzsche e quer dizer: o ser humano é um ser paradoxal, são e doente: nele vivem o santo e o assassino. Bioantropólogos, cosmólogos e outros afirmam: o ser humano é, ao mesmo tempo, sapiente e demente, anjo e demônio, dia-bólico e sim-bólico. Freud dirá que nele vigoram dois instintos básicos: um de vida que ama e enriquece a vida e outro de morte que busca a destruição e deseja matar. Importa enfatizar: nele coexistem simultaneamente as duas forças. Por isso, nossa existência não é simples mas complexa e dramática. Ora predomina a vontade de viver e então tudo irradia e cresce. Noutro momento, ganha a partida a vontade de matar e então irrompem violências e crimes como aquele que ocorreu recentemente.

Podemos superar esta dilaceração no humano? Foi a pergunta que A. Einstein colocou numa carta de 30 de julho de 1932 a S. Freud: "Existe a possibilidade de dirigir a evolução psíquica a ponto de tornar os seres humanos mais capazes de resistir à psicose do ódio e da destruição”? Freud respondeu realisticamente: "Não existe a esperança de suprimir de modo direto a agressividade humana. O que podemos é percorrer vias indiretas, reforçando o princípio de vida (Eros) contra o princípio de morte (Thanatos). E termina com uma frase resignada: "esfaimados pensamos no moinho que tão lentamente mói que poderemos morrer de fome antes de receber a farinha”. Será este o nosso destino?

Por que escrevo isso tudo? É em razão do tresloucado que no dia 5 abril numa escola de um bairro do Rio de Janeiro matou à bala 12 inocentes estudantes entre 13-15 anos e deixou 12 feridos. Já se fizeram um sem número de análises, foram sugeridas inúmeras medidas como a da restrição da venda de armas, de montar esquemas de segurança policial em cada escola e outras. Tudo isso tem seu sentido. Mas não se vai ao fundo da questão. A dimensão assassina, sejamos concretos e humildes, habita em cada um de nós.

Temos instintos de agredir e de matar. É da condição humana, pouco importam as interpretações que lhe dermos. A sublimação e a negação desta anti-realidade não nos ajuda. Importa assumi-la e buscar formas de mantê-la sob controle e impedir que inunde a consciência, recalque o instinto de vida e assuma as rédeas da situação. Freud bem sugeria: tudo o que faz criar laços emotivos entre os seres humanos, tudo o que civiliza, toda a educação, toda arte e toda competição pelo melhor, trabalha contra a agressão e a morte.

O crime perpetrado na escola é horripilante. Nós cristãos conhecemos a matança dos inocentes ordenada por Herodes. De medo que Jesus, recém-nascido, mais tarde iria lhe arrebatar o poder, mandou matar todas as crianças nas redondezas de Belém. E os textos sagrados trazem expressões das mais comovedoras: "Em Ramá se ouviu uma voz, muito choro e gemido: é Raquel que chora os filhos e não quer ser consolada porque os perdeu” (Mt 2,18). Algo parecido ocorreu com os familiares das vítimas.

Esse fato criminoso não está isolado de nossa sociedade. Esta não tem violência. Pior. Está montada sobre estruturas permanentes de violência. Aqui mais valem os privilégios que os direitos. Marcio Pochmann, em seu Atlas Social do Brasil, nos traz dados estarrecedores: 1% da população (cerca de 5 mil famílias) controlam 48% do PIB e 1% dos grandes proprietários detém 46% de todas as terras. Pode-se construir uma sociedade de paz sobre semelhante violência social? Estes são aqueles que abominam falar de reforma agrária e de modificações no Código Florestal. Mais valem seus privilégios que os direitos da vida.

O fato é que em pessoas perturbadas psicologicamente, a dimensão de morte, por mil razões subjacentes, pode aflorar e dominar a personalidade. Não perde a razão. Usa-a a serviço de uma emoção distorcida. O fato mais trágico, estudado minuciosamente por Erich Fromm (Anatomia da destrutividade humana, 1975) foi o de Adolf Hittler. Desde jovem foi tomado pelo instinto de morte. No final da guerra, ao constatar a derrota, pede ao povo que destrua tudo, envenene as águas, queime os solos, liquide os animais, derrube os monumentos, se mate como raça e destrua o mundo. Efetivamente ele se matou e todo os seus seguidores próximos. Era o império do princípio de morte.

Cabe a Deus julgar a subjetividade do assassino da escola de estudantes. A nós cabe condenar o que é objetivo, o crime de gravíssima perversidade e saber localizá-lo no âmbito da condição humana. E usar todas as estratégias positivas para enfrentar o Trabalho do Negativo e compreender os mecanismos que nos podem subjugar. Não conheço outra estratégia melhor que buscar uma sociedade justa, na qual o direito, o respeito, a cooperação e a educação e saúde para todos sejam garantidos. E o método nos foi apontado por Francisco de Assis em sua famosa oração: levar amor onde reinar o ódio, o perdão onde houver ofensa, a esperança onde grassar o desespero e a luz onde dominar as trevas. A vida cura a vida e o amor supera em nós o ódio que mata.

* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor.


Fonte:Adital

Manifesto de Apoio à criação da Ouvidoria Autônoma do Sistema Penitenciário



Organizações da Sociedade Civil promovem manifesto em apoio à criação da Ouvidoria Autônoma do Sistema Penitenciário

Desde 2003, arrasta-se no Executivo projeto de lei que organizará a Ouvidoria da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, conferindo-lhe autonomia e independência. Diante dessa longa demora, entidades lançam manifesto, exigindo providências para a apresentação imediata do projeto de lei ao Legislativo.

Outras entidades que quiserem aderir ao manifesto devem escrever para rodolfo@carceraria.org.br ou paulo@ipdh.org.

MANIFESTO DE APOIO À CRIAÇÃO DA OUVIDORIA AUTÔNOMA DO SISTEMA PENITENCIÁRIO

Nós, movimentos e organizações da sociedade civil subscritos, manifestamo-nos a favor da imediata apresentação à Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, pelo Governador Geraldo Alckmin, do Projeto de Lei Complementar que organiza a Ouvidoria da Secretaria de Administração Penitenciária de forma autônoma e independente e que desde 2003 encontra-se em trâmite no Executivo.

É notório que o sistema penitenciário do estado de São Paulo, impulsionado por ondas de endurecimento penal abrigadas no âmbito do Poder Legislativo, vem ganhando os contornos de verdadeiro mecanismo estatal de violação sistemática dos direitos e garantias fundamentais, inserto no território paulista na forma de vácuos de legalidade, onde a própria Constituição da República parece suspensa e a fronteira legal que separa juízes, acusadores, criminosos e executores, desconstituída, pois dos abusos que o Estado pratica são todos cúmplices.

É neste campo fértil que se projetam novos patamares de tratamentos cruéis e degradantes, fontes do crescimento da criminalidade organizada, da corrupção dos agentes estatais e do desperdício de recursos públicos, cuja aplicação poderia ser redirecionada em benefício de parcela significativa da população, acostumada a receber do Estado apenas a repressão policial e o aprisionamento desmedido.

Sem ilusões, reconhecemos que o enfrentamento da questão penitenciária é complexo, mas acreditamos firmemente na necessidade de criação de uma ouvidoria externa de acompanhamento e fiscalização, com autonomia funcional e independência política, dotada de estrutura e prerrogativas que a capacitem para atender as demandas trazidas pelos presos, familiares, servidores públicos e entidades da sociedade civil. Seria, a nosso ver, a melhor maneira de estabelecer uma interlocução contínua entre a sociedade e a administração, no interesse da solução justa de conflitos, da cabal apuração de denúncias e da mínima humanização do cárcere.

A Ouvidoria hoje existente, uma mera assessoria de gabinete, não espelha nossas aspirações, tampouco contribui para a eficiência da administração ou para a formulação de políticas públicas; situação homóloga à que ocorre com uma miríade de outros órgãos e instituições de apoio e controle, os quais, alijados de independência, estrutura adequada ou prerrogativas necessárias, não conseguem cumprir sua finalidade.

Bom lembrar, aliás, que, em fevereiro de 2008, o estado de São Paulo firmou, em âmbito nacional, o Plano Diretor do Sistema Penitenciário, cuja meta 3 prevê a "criação de Ouvidoria com independência e mandato próprio”, com perspectiva de encaminhamento de projeto de lei à ALESP ainda no segundo semestre de 2010. Não obstante, o projeto de lei atualmente se encontra estagnado na assessoria técnica do gabinete do Secretário de Administração Penitenciária, sem qualquer previsão de novo andamento.

Há quase sete anos o Projeto de Lei Complementar foi barrado pelo Governador Geraldo Alckimin, que, à época, entendeu não ser oportuno seu envio à Assembléia Legislativa. Hoje, uma nova oportunidade se apresenta para que o mesmo governador reveja seu ato e estabeleça um novo marco em sua política penitenciária.

Pela imediata apresentação e aprovação do PLC que organiza a Ouvidoria do Sistema Penitenciário do Estado de São Paulo!

Pastoral Carcerária
Instituto Práxis de Direitos Humanos (IPDH)
Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC)
Ouvidoria da Defensoria Pública do Estado de São Paulo
Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da pessoa Humana/SP
Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo
Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)
Instituto Sou da Paz
Conectas Direitos Humanos
Conselho da Comunidade da Comarca de São Paulo
Grupo Tortura Nunca Mais/SP

[Fonte: Pastoral Carcerária].

Fonte:Adital



Várias organizações

terça-feira, 12 de abril de 2011

ENTREVISTA: A INCRÍVEL HISTÓRIA DE UMA JUÍZA DE ITABUNA

 
Juíza Antônia Faleiros

Aos 14 anos, ela trabalhava em um canavial no interior de Minas Gerais. Aos 17, era empregada doméstica em Belo Horizonte e, por não ter onde dormir, durante oito meses passou as noites em um ponto de ônibus em frente à antiga Telemig, que era a companhia telefônica de Minas.
Para conseguir aprovação em seu primeiro concurso, para oficial de justiça do Tribunal de Justiça daquele estado, ela catou folhas borradas de um mimeógrafo onde faziam apostilas de um cursinho preparatório. As folhas eram jogadas no lixo, de onde ela as recolheu, estudou e ficou em terceiro lugar no concurso.
A hoje Doutora Antônia Marina Faleiros é sem dúvida alguma uma vencedora, uma mulher que superou todos os obstáculos e dificuldades e veio a ocupar cargos importantes, como procuradora do município de Belo Horizonte e procuradora do Banco Central. Atualmente, ela é juíza da 1ª Vara Crime de Itabuna, que julga crimes relacionados a tóxicos.
Mas a magistrada não é somente uma pessoa que venceu na vida. Ela é também uma mulher singular, que não se limita às paredes de um gabinete e gosta de ir aos bairros, conhecer gente. Nessa entrevista concedida ao PIMENTA, a juíza surpreende, comove e demonstra que ainda é possível acreditar no ser humano.

PIMENTA – Eu gostaria que a senhora contasse o início de sua história: onde nasceu, sua infância…
Dra. Antônia - Eu nasci em Serra Azul de Minas, um lugar belíssimo, extremamente pobre, mas muito bonito. Era uma família grande, como todas as famílias do interior: pai, mãe e um monte de irmãos. E minha mãe sempre foi uma pessoa muito entusiasmada. Ela não teve oportunidade de estudar, só fez até o que se chamava na época de quarta série primária. E era professora rural, dava aula no Mobral e sempre teve uma exigência muito grande com os filhos, sempre quis botar os filhos pra frente.

PIMENTA – Quais são as histórias das quais a senhora se recorda dessa época?
Dra. Antônia – Há algumas histórias interessantes que envolveram minha mãe. Quando fiz meu primeiro concurso público, eu passei em terceiro lugar para oficial de justiça do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, então eu fiquei entusiasmadíssima e fui contar para ela. Quando falei que havia passado em terceira colocação, ela disse: “mas a prova estava tão difícil assim?”. Eu mencionei a concorrência e salientei que muitas pessoas haviam ficado para trás, mas ela respondeu: “você já viu algum bom corredor olhar para quem está ficando pra trás? Ele olha para os concorrentes que estão na frente”. Esse é um exemplo do nível de exigência da minha mãe. Ela morreu dois meses depois da minha formatura em Direito e eu fiquei bastante magoada porque era meu sonho conseguir ter um emprego e poder dar a ela algumas coisas com as quais ela sonhava.

PIMENTA - Por exemplo…
Dra. Antônia – Eu me emociono sempre quando me lembro disso. Um dos sonhos da minha mãe era ir à Aparecida do Norte, que é um santuário católico no interior de São Paulo e nós não tivemos a oportunidade de atender esse desejo. Ela morreu antes que eu tivesse um emprego que me permitisse lhe dar o prazer de conhecer Aparecida do Norte.

PIMENTA - Vocês viviam na cidade ou na zona rural?
Dra. Antônia – Até os meus sete anos, nós morávamos na roça. Depois meu pai se mudou para a cidade, que era tão pequena que se pode dizer que é como se fosse uma roça. Eu fui conhecer luz elétrica aos 17 anos. Meu pai era trabalhador do DER, o Departamento de Estradas de Rodagem de Minas Gerais, trabalhador braçal.

PIMENTA - Quantos irmãos?
Dra. Antônia – Éramos seis, mas um morreu há 11 anos. Eu sou a filha mais velha e depois de mim tem outra irmã e mais três irmãos. Muitos anos depois, quando eu já tinha deixado a casa de meus pais, minha mãe teve outra filha, que foi a irmã que eu criei, porque minha mãe a deixou pequena e ela acabou virando “minha filha” e veio comigo para a Bahia.

PIMENTA - Como foi a história do seu trabalho em um canavial?
Dra. Antônia – Quando eu terminei naquela época a quarta série, com 14 anos, não tinha continuação lá. E apareceram pessoas que contratavam trabalhadores, inclusive menores, para o corte de cana. Quem fazia a intermediação e ia pelas cidades procurando era chamado de “gato” e os capatazes que controlavam o trabalho no canavial preferiam menores, porque eles achavam que podiam até bater na gente. Como não tínhamos outro meio de sobrevivência, nós seguimos para esse trabalho, eu e mais dois irmãos, de 13 e 12 anos.

PIMENTA – Então a senhora começou a trabalhar com essa idade…
Dra. Antônia – Na verdade, desde bem pequena eu trabalhava na minha cidade. Desde pequenininha eu plantava, vendia hortaliças, lavava roupa para as pessoas e também dava aula para meus colegas. Desde que me conheço por gente, eu sempre trabalhei mesmo, além do serviço de casa, de cuidar dos irmãos mais novos. Minha mãe era muito doente, ela teve muitos partos malsucedidos. Naquele tempo não se fazia controle de natalidade, então ela teve muitas gestações sucessivas, com alguns abortos e crianças que nasceram, mas vieram a falecer logo em seguida.

PIMENTA - No canavial, a senhora chegou a ser submetida a algum maltrato?
Dra. Antônia – Eu praticamente não. A única coisa que os fazia ficar muito bravos comigo é que eu ficava estudando à noite em uma cabana. E, às vezes, a lamparina caía e se iniciava um pequeno incêndio. Quando isso acontecia, acabava acordando todo mundo, era aquele tumulto enorme e no dia seguinte as pessoas estavam com sono. Então eu acabava ficando sem o café da manhã como punição por ter causado o “incêndio” e acordado todo mundo.

PIMENTA - E isso aconteceu muitas vezes?
Dra. Antônia – Algumas vezes (risos). Eu costumava ler muito. Lia dicionário, pegava livros emprestados, fazia qualquer negócio para aprender.

PIMENTA – Mas como foi para vocês, tão novos, sair assim de casa para trabalhar?
Dra. Antônia – Na época, os pais que tinham condições mandavam os filhos para escolas nas cidades de Serro ou Diamantina. Eu me lembro bem de meu pai dizendo: “olha, eu não tenho dinheiro, não posso pagar nada disso, mas, enquanto eu tiver vida, toda noite eu vou rezar um terço pra vocês”. Meu pai viveu mais uns vinte e poucos anos depois disso e toda noite, podia estar cansado como fosse, ele só dormia depois de ajoelhar no oratório e rezar o terço. Ele morreu no dia 15 de abril de 1997, quando eu já era procuradora da Fazenda em Uberlândia. A minha mãe morreu antes, em 1992, logo após minha formatura em direito. Eu me formei no final de 91.

PIMENTA – Até quando a senhora ficou trabalhando nesse canavial?
Dra. Antônia – O trabalho de colheita é sazonal. Nós ficávamos cerca de três meses e depois voltávamos para casa e nesse meio tempo eu voltei a estudar em Serra Azul. A cada ano era aquela agonia para saber se iriam oferecer a série seguinte. Dessa maneira eu terminei o antigo ginásio, fiz magistério e sempre retornava ao canavial. Bem, depois disso surgiu um emprego de doméstica em Belo Horizonte, quando eu tinha por volta de 16, 17 anos.

PIMENTA - Como foi essa experiência?
Dra. Antônia – A minha patroa não gostava que empregada dormisse em casa e, para não dizer à minha mãe que eu não tinha onde morar e para não dizer à patroa que eu iria morar na rua, eu falei para esta que eu tinha uma tia em um bairro distante e que moraria com ela. Já para minha mãe eu dizia que morava na casa da patroa. Só que eu não morava em nenhum desses lugares.

PIMENTA - Onde a senhora morava?
Dra. Antônia – Eu passava as noites na porta da Telemig (antiga companhia telefônica de Minas Gerais), um prédio grande e em frente havia um ponto de ônibus bastante movimentado até de madrugada. Eu ficava lá fingindo que estava esperando o ônibus e passava a noite. Fiquei assim durante uns oito meses, mais ou menos, até que um dia chegou uma senhora e me ofereceu um lugar para ficar. Isso me marcou tanto, que eu tenho por princípio não trancar portas na minha casa, porque um dia alguém abriu uma porta pra mim.

PIMENTA - E o primeiro concurso?
Dra. Antônia – No ano em que eu faria 18 anos, foi publicado o edital para o concurso do Tribunal de justiça de Minas Gerais e eu me inscrevi para oficial de justiça. Eu não tinha nem noção do que era o tribunal e por isso precisava estudar muito. Havia em Belo Horizonte um curso preparatório chamado Vila Rica, mas tinha que comprar a apostila. Quando eu soube o preço, quase caí pra trás e vi que não teria condições. Então eu notei, no local onde as apostilas eram impressas, naquela época no mimeógrafo, que de vez em quando algumas folhas borravam e eram jogadas no lixo. Eu estudei com essas folhas do curso Vila Rica, fiz o concurso em junho de 1981, completei 18 anos em julho e no final de agosto eu assumi como oficial de justiça.

PIMENTA - Vida nova…
Dra. Antônia – Foi aí que as coisas começaram a mudar. Eu conheci também pessoas muito iluminadas, como o desembargador Walter Veado. Ele foi uma das pessoas que me estimulou a fazer o curso de Direito, que a princípio não me atraía, embora eu já tivesse algum contato com a área no trabalho como oficial de justiça. Acabei fazendo o vestibular da Universidade Federal e cursei Direito.

PIMENTA – Me desculpe, mas como era mesmo o nome do desembargador?…
Dra. Antônia – Desembargador Walter Veado. É um nome muito engraçado e há inclusive uma história de um fato curioso ocorrido com ele. Quando foi promovido a juiz em Belo Horizonte, ele vinha de uma cidade chamada Oliveira. A escrivã estava se preparando para apresentá-lo aos funcionários e preocupadíssima com o nome dele. Então ela ia decorando: “Dr. Walter Veado, que foi juiz em Oliveira”. Mas na hora de apresentar, ela acabou dizendo: “esse é o Dr. Walter juiz, que foi veado em Oliveira” (risos). É uma família tradicional em Minas.

PIMENTA - Bem, então a senhora foi fazer Direito…
Dra. Antônia – Isso, e aí surgiu uma mania em minha vida, que foi fazer concurso. Durante uns sete a oito anos, eu fiz um concurso por ano. Eu dava aula de português em um cursinho chamado Sistema, mas não tinha nenhuma credencial nem era formada em Letras. Então eu fazia os concursos e tinha que fechar a prova de português. Era aquela prova que mostravam aos alunos para dizer quem era o professor.

PIMENTA - A senhora chegou a advogar?
Dra. Antônia – Durante um tempo eu dei aula e, depois que me formei, tive escritório em Belo Horizonte. Fui advogada do Sindicato dos Professores, da Pastoral da Terra. Eu, na verdade, atuava na pastoral da Arquidiocese de Belo Horizonte, atendendo populações socialmente vulneráveis. Era um trabalho bem interessante. Depois, eu fiz concurso para a Procuradoria do INSS e fui aprovada, mas não cheguei a assumir. Depois fiz concurso para delegada e, após a nomeação, fiquei somente 24 horas no cargo, em uma cidade chamada Barra do Garças, no estado do Mato Grosso.

PIMENTA - Por que só 24 horas?
Dra. Antônia – Havia um senhor lá chamado Valdo Varjão, que chegou para se apresentar a mim. Ele se sentou em frente à minha mesa, perguntou se eu era a nova delegada e disse que estava à minha disposição. Falou assim: “O que precisar, pode me chamar. Se alguém mexer com você, se alguém te incomodar, você pode me chamar…”. Aí eu falei: “Epa, essa fala é minha, não?”. Tinha alguma coisa errada naquela história e eu comecei a achar aquilo meio esquisito. Era um lugar muito distante, na época um fim de mundo. Não sei como é hoje, mas na época havia somente uma cabine de telefone na praça para toda a cidade. Eu comecei a ficar agoniada e posso até dizer que fiquei com medo mesmo.

PIMENTA –  A senhora teve uma experiência no Banco Central…
Dra. Antônia – Eu trabalhei no Banco Central na época da operação do Banestado. Fui também procuradora do município de Belo Horizonte, além de coordenadora de Ação Regional no governo de Patrus Ananias.

PIMENTA - A senhora foi filiada ao Partido dos Trabalhadores?
Dra. Antônia – Não, eu nunca fui filiada a nenhum partido. Sempre fui muito independente e dizia que não queria rezar por nenhuma cartilha porque preferia pensar por mim mesma. Tive proximidade, tenho uma grande amizade com Patrus Ananias, tive um contato com Lula em 1979. Era uma relação que já vinha da minha mãe, que trabalhava nas Comunidades Eclesiais de Base.

PIMENTA – Na Bahia, seu primeiro trabalho foi como juíza de Mucuri?
Dra. Antônia – Eu também fiz alguns plantões em Camaçari e assumi em Mucuri em 2003. Tenho uma paixão muito grande por um trabalho que fizemos lá, em parceria com a comunidade, que mereceu um prêmio do Conselho Nacional de Justiça. Foi um trabalho de conscientização dos carvoeiros e um dos pilares da minha atuação era não interferir na organização social. A ideia era levar autonomia e não manter um regime de dependência.

PIMENTA – Por que a senhora decidiu fazer esse trabalho?
Dra. Antônia – Quando eu chego em qualquer comarca, eu sempre visito as comunidades e fiz isso lá em Mucuri. Em uma das primeiras visitas, a um lugar chamado Oliveira Costa, uma carvoaria, eu enxerguei uma lona de onde vinha um barulho. Então eu perguntei à senhora que estava ali se era algum animal que ela criava ali dentro e ela me respondeu que eram “os minino”. Eram crianças que estavam ainda engatinhando e que as mães, para que elas não entrassem embaixo dos veículos que transportam a madeira ou caíssem dentro dos fornos, as deixavam em um buraco, cercado por uma lona. Aquilo me impressionou muito. Então o que propusemos foi a criação de uma associação e a instalação de um centro de convivência.

PIMENTA - E as crianças maiores já trabalham nos fornos…
Dra. Antônia – Uma coisa que me chamou muita atenção foram os dedinhos das crianças já sem unha. Era só um toquinho perto da cutícula. Eu conversei com uma professora de um distrito chamado Nova Brasília e ela me explicou que as crianças ajudam a descarregar os fornos e muitas vezes queimam as pontas dos dedos. Com um tempo, as unhas param de nascer.

PIMENTA - É interessante quando o juiz sai do gabinete e mostra verdadeira preocupação com os problemas sociais…
Dra. Antônia – Em qualquer lugar onde estou trabalhando eu gosto muito de me aproximar e conhecer a realidade das pessoas. Saber se elas moram bem ou mal, se a região tem ou não infraestrutura adequada. Eu gosto de gente, sou uma apaixonada pelo ser humano. Não interessa o tropeço que tenha dado.

PIMENTA - A senhora já vislumbrou algum projeto social em Itabuna?
Dra. Antônia – Eu já tenho montadinho aqui. Já conversei com o Ministério Público, com os defensores, que uma coisa que me chamou atenção – e isso não é nenhuma crítica, mas uma constatação – é que falta área de lazer coletivo nos bairros da cidade. Não existe um parque público, assim como faltam áreas para a prática de esportes. Nós pensamos em levar um projeto até a Secretaria Nacional Antidrogas, que repassa recursos para iniciativas de cunho social.

PIMENTA – Em pouco mais de um ano em Itabuna, já deu para conhecer os bairros?
Dra. Antônia – Eu conheço todos os bairros de Itabuna, pelos nomes e pelos apelidos.

PIMENTA - Como a senhora se define?
Dra. Antônia – Eu sou uma pessoa abençoada, muito feliz com o que faço e com as pessoas com as quais eu convivo. Sou uma pessoa bastante transparente, não tenho nenhuma máscara. Eu costumo dizer que fui abençoada pela família que tive.

PIMENTA - A simplicidade é uma postura que nem todas as pessoas que ocupam cargos considerados importantes adotam…
Dra. Antônia – Meu avô contava uma história que guardo comigo. É a fábula do burro e da relíquia. Certa vez um burro foi escolhido para transportar uma imagem sacra. Então arrumaram o burro, colocaram a imagem e, a cada lugar que o burro passava, as pessoas se curvavam, abriam passagem, e o burro foi “se achando”. Quando alguém não prestava atenção, ele se sacudia, fazia um barullho e as pessoas faziam toda aquela reverência. No fim da viagem, o burro entregou a imagem e, no retorno, ninguém mais ligava para o animal. Quando ele fazia barulho, levava um chicotada, ninguém dava passagem, até que o burro foi ficando deprimido e procurou um burro velho. Ele disse assim : “Puxa, eu não estou entendendo. Ontem eu passei, as pessoas se curvavam, me trataram maravilhosamente bem, e agora quando eu volto ninguém mais quer saber de mim. Aí aquele burro velho e sábio olhou para ele e disse: “O problema de alguns burros é não saber que toda relíquia se entrega um dia. E se o burro não se comportar muito bem enquanto estiver com a relíquia, no final ele fica sozinho”.

PIMENTA - Uma lição para os vaidosos…
Dra. Antônia – É preciso não se deixar influenciar, seja pelo que for: cargo, beleza… Não tem beleza que não acabe, o melhor jogador do mundo um dia deixa de ser, a top-model um dia deixa de ser. A própria relíquia da vida nós entregamos um dia e eu acredito na prestação de contas depois a um juiz que não se atém a processos, que é o Criador.

FONTE: BLOG PIMENTA NA MUQUECA