Sérgio
Salomão Shecaira
(Professor
Titular de Direito Penal da USP. Ex-presidente do IBCCRIM.)
“O que é um homem
revoltado? Um homem que diz não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é também um
homem que diz sim, desde o seu primeiro movimento” .
(Camus, Um homem revoltado).
Recebi
um e-mail no dia 12 de junho. Dia marcante, não podia esquecê-lo. Estava em
Madri para participar de um Congresso sobre pena de morte. Minha tese lá
defendida era que o Brasil não tem uma pena de morte oficialmente executada
desde 1876, quando, ainda no Império, o escravo Francisco foi executado na
cidade de Pilar, Alagoas.
Tem
sim, uma Morte sem Pena. Temos mais execuções extrajudiciais que todos os
países monitorados pela Anistia Internacional. Pode parecer brincadeira, mas,
no ano de 2012, 682 pessoas foram executadas ao redor do mundo (excetuada a
China, que não é acompanhada pela Anistia Internacional) enquanto as Polícias
Militares de São Paulo e do Rio de Janeiro mataram 804 pessoas!
Mas,
voltemos ao e-mail. Um amigo foi assaltado no dia dos namorados. Levaram dele
dinheiro, celulares, cartões, documentos e sua aliança. Os ladrões, românticos
como poucos, permitiram que ele permanecesse com as rosas vermelhas que
comprara para a amada. Ele encontrou, minutos depois, dois PMs no mesmo
quarteirão da rapina. Ao narrar o roubo, é informado de que não podiam fazer
nada. Estavam muito ocupados em reprimir as manifestações populares que
espocavam em São Paulo. O saldo todos sabem: centenas de manifestantes
revoltados presos. Uma imprensa cativa passa a se revoltar com sua repórter que
recebera um tiro no olho. Enfim, o país pega fogo e o povo volta às ruas para
dizer NÃO.
Algumas
consultas aos sites brasileiros me permitiram ver o que ocorria por aqui.
Estávamos quase em guerra. No caminho para o Aeroporto de Barajas, li o El País. Trazia na capa e em outras duas
páginas internas as manifestações brasileiras. Ao chegar por aqui, no domingo, 14
de junho, acabo por me inteirar sobre o que ocorria. As pessoas estavam sendo
presas por portarem vinagre (não me recordo de ser o portador de vinagre um
autor de qualquer figura típica) e chegaram a restaurar a odiosa prisão por
averiguação. Meu celular tinha algumas chamadas de líderes estudantis que já
haviam impetrado medidas de habeas
corpus e que tiveram a liminar indeferida no plantão do
Tribunal de Justiça de São Paulo, como era de se esperar. Urgia reunir-me com
os meus alunos de Direito. Acabei por fazê-lo no domingo à noite e pensamos,
juntos, uma estratégia para contornar o problema.
Resolvemos
impetrar um novo habeas corpus preventivo,
em nome daqueles que não assinaram a primeira medida, dessa feita em primeira
instância. Apontando o comandante do policiamento da capital como autoridade
coatora, a competência passava a ser do Dipo (Departamento de Inquéritos
Policiais e Polícia Judiciária). Processo devidamente distribuído, numerado
(0054176-22.2013.8.26.0050), cabia-nos apresentarmo-nos, pacientes e
impetrantes, para conversar com o magistrado responsável pela decisão. Quando
soube o nome dele, fiquei feliz. Afinal de contas, eu o conhecia e sabia que
era filho de um ilustre Desembargador a quem admiro por seu senso agudo de
justiça. Disse aos meus alunos que acompanhavam ansiosos por uma decisão
favorável: esse magistrado há de ser justo e humano. É o que precisávamos
naquele momento de angústia.
Ao
entrar na sala dos magistrados, onde estava nossa esperança, tive um choque com
a fria recepção. A indiferença cortante só foi interrompida pela rispidez com
que fomos recebidos. Ele nos ouviu com certa irritação de quem acabara de ser
interrompido durante seu trabalho e nos disse que talvez não pudesse examinar o
caso rapidamente, pois estava decidindo um pedido de prisão temporária.
Ponderei que a passeata estava marcada para as 17 horas e que uma prestação
jurisdicional – com a concessão do salvo conduto pretendido – teria que ser feita
antes desse horário. Desculpei-me por estar em uma situação de ameaça à nossa
liberdade de ir e vir em horário tão inadequado à agenda judicial.
Pouco
tempo depois, a decisão. Destaco trechos da decisão e comento: “Antes, é mister consignar que recebi os autos
conclusos às 15h:30, com expresso pedido para que seja o presente julgado até
as 19h (SIC), o que foge do razoável, convenha-se. [...]”
Conheço
alguns colegas da Universidade Pública que não gostam de alunos. Fico surpreso
que assim seja. Também me surpreende o juiz que não gosta de decidir e muito
menos de atender advogados. Não me consta que os esforços do Conselho Nacional
de Justiça para uma justiça célere no atendimento ao jurisdicionado tenha dia e
hora para a prestação judicial. Especialmente quando tratamos da liberdade de
ir e vir em sede do Remédio Heroico. Também não me consta que decisões
judiciais sejam o adequado espaço para externar o mau humor do meritíssimo.
Passo
à essência da decisão:
“Se de um lado os impetrantes sustentam que a polícia
está a realizar a odiosa prisão para averiguação, sem respaldo legal, e que,
por isso, há risco de que venham eles a sofrer tal medida constritiva, de outro
se vê relatos de que a condução de manifestantes ao distrito policial deu-se
por força da prática de crimes de dano qualificado, incêndio, dentre outros.
Aparentemente abusos vêm ocorrendo de parte da polícia e também dos
manifestantes. Neste ‘writ’, resta evidente que não pretendem os impetrantes,
professores e alunos da Faculdade de Direito da USP, praticar qualquer conduta
que se subsuma a crime. E, por isso, não há que se presumir estejam na
iminência de sofrer violação a direito constitucional pela Polícia
Militar [...] Posto
isso, indefere-se a medida liminar”.
Lógica
acaciana: como não pretendíamos praticar crimes, por nossa condição de
professores e estudantes da USP, não merecíamos a concessão de um salvo
conduto. Afinal, somente aqueles que pretendem cometê-los é que têm o direito
público subjetivo de obterem a proteção judicial. Assim, se pretendêssemos
praticar crimes, talvez pudéssemos ter a medida liminar! Na próxima vez,
lembrar-me-ei disso.
Prontamente
me lembrei do artigo do Magistrado Alberto
Alonso Muñoz, intitulado Eichmann em Jerusalém e a banalidade
do mal na decisão do juiz. Nesse belo texto, publicado no Boletim da Associação Juízes para a Democracia,(1)
o jurista e filósofo destaca que um dos males de decisões jurisdicionais é a
daquele magistrado que não pensa na decisão. “É o ‘pseudo-positivista’ (sinônimo de ‘legalista’; cuidado: o
positivismo é uma rica família de filosofias jurídicas que jamais defendeu a
aplicação irrefletida das normas). É o cumpridor mecânico de normas, pelo mero
fato de estarem vigentes. É o aplicador, por convicção irrefletida, de uma
jurisprudência ‘consolidada’. Essa é a forma mais monstruosa: nele, não há o
não-querer pensar, que ainda lhe apresenta uma escolha ética. Há apenas o “não
pensar” burocrático daquele que se tornou mera peça da engrenagem.”
A
conclusão do artigo é a de que “a banalidade do mal”, do mal burocrático, está
mais além do que um “não querer pensar”, mas, sim, em um puro e simples “não
pensar”. (2)
Com
tudo isso, deixamos passar bons momentos para reflexão. Nós todos que podíamos
estar pensando na beleza da insurgência, na lição que os políticos poderiam
tirar dos reclamos das ruas, acabamos por ter que pensar na indiferença que
parte do Poder Judiciário tem pelos jurisdicionados. O sonoro NÃO das ruas
também é um SIM a um Estado de bem-estar social. Também é um sim às coisas que
todos os cidadãos merecem. Em um dos jogos da Copa das Confederações, havia um
pedido singelo: hospitais padrão FIFA, para além de bons estádios de futebol. O
Brasil de 2013 está diante de uma recusa e não de uma renúncia.
Permito-me
sugerir uma questão mais à pauta – consideravelmente justa – das reivindicações
populares. Que a liderança horizontal nos ouça. Queremos um Poder Judiciário em
que as petições sejam lidas, pensadas e cujas decisões não contemplem a
banalidade do mal. Queremos que os serviços prestados ao público também pelo
Poder Judiciário sejam de melhor qualidade. Pois, afinal de contas, qualquer
arrogância tem que ser merecida.
Notas
(1) Ano 14, n. 52, jan.-mar. 2011, p. 7.
(2) Idem, ibidem.
Sérgio
Salomão Shecaira
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