terça-feira, 20 de novembro de 2012

O direito das minorias emergentes, dos conflitos e das lutas sociais. Entrevista com Antonio Carlos Wolkmer.

 

Antonio Carlos Wolkmer é um teórico do direito vinculado aos estudos sobre Pluralismo Jurídico. Advogado, Doutor em Filosofia do Direito e da Política pela UFSC, professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina, é autor de vários livros, dentre os quais "Fundamentos de História do Direito", "História do Direito no Brasil", "Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico" e “Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma Nova Cultura no Direito”.
  
Pergunta: O Pluralismo jurídico revela uma proposta singular para o momento atual. Qual é a base dessa proposta?
Antonio Carlos Wolkmer: Trata-se de uma proposta multidisciplinar que visualiza, como novo paradigma, um pluralismo jurídico-político, designado como "pluralismo comunitário-participativo", apto a reconhecer e legitimar emergentes normatividades extra e intra-estatais, engendradas no bojo de conflitos e lutas sociais, contradições e correlações de forças, reivindicações, carências e necessidades humanas.

Pergunta: A Justiça mostra os reflexos da crise contemporânea. Como isso ocorre no Brasil?
Antonio Carlos Wolkmer: A crise de identidade do Judiciário condiz com as próprias contradições da cultura jurídica nacional, construída sobre uma racionalidade técnico-dogmática e calcada em procedimentos lógico-formais, e que, na retórica de sua "neutralidade", tem sido incapaz de acompanhar o ritmo das transformações sociais e a especificidade cotidiana dos novos conflitos coletivos. Trata-se de uma instância de decisão não só submissa e dependente da estrutura de poder dominante, como, sobretudo, de órgão burocrático do Estado, desatualizado e inerte, de perfil fortemente conservador e de pouca eficácia na solução rápida e global de questões emergenciais vinculadas, quer às reivindicações dos múltiplos movimentos sociais, quer aos interesses das maiorias carentes de justiça e da população privada de seus direitos. A crise vivenciada pela Justiça oficial, refletida na sua inoperacionalidade, lentidão, ritualização burocrática, comprometimento com os "donos do poder" e falta de meios materiais e humanos, não deixa de ser sintoma indiscutível de um fenômeno mais abrangente, que é a própria falência de ordem jurídica estatal. O certo é que nos horizontes da cultura jurídica positivista e dogmática, predominante nas instituições políticas brasileiras, o Poder Judiciário, historicamente, não tem sido a instância marcada por uma postura independente, criativa e avançada em relação aos graves problemas de ordem política e social. Pelo contrário, trata-se de um órgão elitista que, quase sempre, ocultado pelo "pseudoneutralismo" e pelo formalismo pomposo, age com demasiada submissão aos ditames da ordem dominante e move-se através de mecanismos burocrático-procedimentais onerosos, inviabilizando, pelos seus custos, o acesso da imensa maioria da população de baixa renda.

Pergunta: Você afirma, em Pluralismo jurídico, que os movimentos sociais são uma fonte de produção jurídica. O que comprova essa relação?
Antonio Carlos Wolkmer: As fontes de produção jurídica que se estruturam em termos de um conteúdo (sentido material) e de uma configuração simbólico-cultural (sentido formal), reproduzem a manifestação de seres humanos inter-relacionados, que vivem, trabalham, participam de lutas e conflitos, buscando a satisfação de necessidades cotidianas fundamentais num interregno marcado pela "convivência das diferenças". Nestas condições, a produção jurídica não pode deixar de retratar o que a própria realidade dimensionaliza, bem como de corresponder às reais necessidades da sociedade em dado momento histórico, moldando-se à flutuações cíclicas que afetam também os demais fenômenos do mundo cultural (aspectos sociais, econômicos, políticos, éticos, religiosos, lingüísticos etc.). As transformações da vida social constituem, assim, a formação primária de um "jurídico’ que não se fecha em proposições genéricas e em regras fixas formuladas para o controle e solução dos conflitos, mas se manifestam como o resultado do interesse e das necessidades de agrupamentos associativos e comunitários, assumindo um caráter espontâneo, dinâmico e flexível. Esta concepção aqui partilhada afasta-se das expressões normativas pré-fixadas e abstratas, criadas e impostas, com exclusividade, pela moderna estrutura estatal de poder. A produção jurídica formal e técnica do Estado moderno só atinge parcelas da ordem social, achando-se quase sempre em atraso, relativamente às aspirações jurídicas mais desejadas, vivas e concretas da sociedade como um todo. Evidentemente, que o Direito projetado pela sociedade burguês-capitalista, corporificado pelo modelo de centralização estatal, impõe um rígido sistema de fontes formais caracterizado pela supremacia do Direito legiferado e escrito sobre o Direito consuetudinário e o Direito dos juristas, e pelo sufocamento e exclusão de práticas informais vinculadas ao Direito Comunitário autônomo. Parece claro, por conseguinte, que o problema das fontes do Direito numa sociedade determinada e historicamente concreta não está mais na priorização de regras técnico-formais e nas ordenações teórico-abstratas perfeitas, porém na dialética de uma práxis do cotidiano e na materialização normativa comprometida com a dignidade do novo sujeito social. Os centros geradores de Direito não se reduzem, de forma alguma, às instituições e aos órgãos representativos do monopólio do Estado, pois o Direito por estar inserido nas e ser fruto das práticas sociais, emerge de vários e diversos centros da produção normativa, tanto na esfera supra-estatal (organizações internacionais) como no nível infra-estatal (grupos associativos, organizações comunitárias, corpos intermediários e movimentos sociais). Portanto, o ponto de partida para a Constituição e o desenvolvimento do Direito vivo comunitário não se prende nem à legislação, nem à ciência do Direito e tampouco à decisão judicial, mas às condições reais da vida cotidiana, cuja real eficácia apóia-se na ação de grupos associativos e organizações comunitárias.

Pergunta: Revela-se interessante a sua abordagem sobre o pluralismo júridico na prática participativa. Como seria a síntese disso?
Antonio Carlos Wolkmer: O alargamento e consolidação do espaço público, de base democrática, pluralista e descentralizada, só se materializa com a efetiva participação e controle por parte dos agentes e grupos comunitários. Ademais, aquelas formulações, reivindicações e propostas sobre direitos, leis e justiça, que não são mais contemplados, eficaz e competentemente, pelos canais tradicionais da cultura jurídica estatal ou mesmo destituídos de sentido num novo paradigma, passam a ser criados e absorvidos por uma pluralidade de forças participativas insurgentes. As experiências e as práticas cotidianas dos movimentos sociais acabam redefinindo, sob os liames de um pluralismo político e jurídico comunitário-participativo enquanto condição paradigmática, um espaço que minimiza o papel do "institucional/oficial/formal" e exige uma "participação" autêntica e constante no poder societário, quer em nível da tomada e controle de decisões, quer em nível de produção legislativa ou da resolução dos conflitos. Por conseguinte, a "participação" propicia que a comunidade atuante decida e estabeleça os critérios do que seja "legal", "jurídico" e "justo", levando em conta sua realidade concreta e sua concepção valorativa de mundo.

Pergunta: O critério do justo pode ser estabelecido com unanimidade?
Antonio Carlos Wolkmer: Pode vir a ser defendido por todos? Na medida em que o critério do "justo" resulta daquilo que os grupos comunitários reconhecem como tal, correspondendo eficazmente aos padrões da vida cotidiana almejada pelas coletividades submetidas às relações de dominação, a noção de Justiça acaba se constituindo numa necessidade por liberdade, igualdade e emancipação.

Pergunta: Sob a ótica do pluralismo jurídico, o que se evidencia e pode ser precisado?
Antonio Carlos Wolkmer: Para se alcançarem as condições teóricas e práticas de supremacia do "direito justo", de uma juridicidade diferente, de se pensar o "novo" e a prática de uma legitimidade alternativa, é essencial operar com a estratégia de uma pedagogia emancipadora. Para isso, faz-se necessário desenvolver, também, processos nacionais direcionados a modificar e a conceber um novo espaço de convivência. Trata-se de construir uma racionalidade como expressão de realidade histórica enquanto exigência a afirmação da liberdade, emancipação e auto-determinação. Ora, somente uma ampla educação de base, a longo alcance, oferecerá elementos conscientes para propiciar outra racionalidade, configuradora do "novo" no Direito e na Sociedade, bem como instrumentará valores e modelos teóricos aptos para captar e expressar tais percepções. Trata-se de uma educação libertadora comprometida com a desmistificação e conscientização, habilitada a levar e a permitir que as identidades individuais e coletivas assumam o papel de novos sujeitos da história, fazendo e refazendo o mundo da vida cotidiana, a ampliando os horizontes do poder societário.

Fonte: Alfa-Omega

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