Andre Augusto Salvador Bezerra *
As mobilizações populares que atingem o país desde junho passado levaram
o governo federal a sair de um aparente estado de letargia – até então apoiado
em elevados índices de popularidade da presidenta da República – para
apresentar ou reiterar uma série de propostas de reformas estruturais. É de tal
quadro que ideias como a instauração de Assembleia Constituinte e plebiscito
para reforma política, bem como a contratação de médicos estrangeiros e a
restruturação curricular dos cursos de medicina, foram inseridas na discussão
na esfera pública.
No
âmbito dos debates sucedidos, a imprensa tem divulgado entrevistas com juristas
que, em geral, tecem considerações acerca da constitucionalidade ou
inconstitucionalidade das medidas anunciadas. Trata-se de profissionais,
normalmente professores de universidades renomadas, que frequentemente
apresentam-se aos jornalistas como analistas neutros, capazes de alcançar
verdades irrefutáveis mediante a utilização de raciocínios dotados de exatidão
quase matemática.
Pela
sua origem predominantemente acadêmica, tais entrevistados têm, de fato,
completa legitimidade para falar na qualidade de cientistas do Direito.
Compreensível, assim, que queiram mostrar que suas análises decorrem da
aplicação rigorosa de métodos científicos, eminentemente objetivos, portanto.
Tomada de posição
O
que chama a atenção, porém, é a neutralidade da análise que muitos querem
aparentar. Os pareceres são, por vezes, externados aos jornalistas como se os
juristas entrevistados fossem terceiros absolutamente desinteressados na
dinâmica política brasileira e, em tal condição, desprovidos de inclinações
partidárias ou de interesses de classe.
Esquece-se,
nesse aspecto, o quanto é anacrônica a aludida aparência de neutralidade. A
dinâmica dos acontecimentos do século 20 mostrou que a ciência não é neutra e
que suas descobertas não trazem necessariamente progresso à humanidade. As duas
guerras mundiais e os desastres ambientais, dentre tantos outros eventos,
evidenciaram, pelo contrário, que o saber científico pode servir apenas aos
grupos hegemônicos, ainda que, para isso, produza destruição em massa, em
verdadeira escala industrial.
A
ciência e o culto ao saber científico não cumpriram sua promessa de emancipar o
homem, como diria Boaventura de Sousa Santos. Cabe, por isso, ao cientista,
formular juízos de valor em sua pesquisa, ressaltando a importância – ou não –
de suas análises para o bem-estar da sociedade.
De que lado você
está?
Idêntico
raciocínio vale para as análises realizadas pelos cientistas do Direito quando
da interpretação de normas jurídicas. Isto, principalmente, quando se fala de
interpretação de Constituição, documento onde o Direito se encontra com a
Política: não se trata apenas de um conjunto de normas hierarquicamente
superiores, eis que estipula igualmente projetos e objetivos a serem alcançados
pelo Estado por ela regido.
No
Brasil, tudo isso fica consideravelmente claro quando se leva em conta que a
Constituição Federal de 1988 contém extensa gama de direitos humanos, de cunho
eminentemente progressista, em concomitante consagração de ordem econômica, em
muitos pontos de caráter conservador. Não há como o intérprete desta carta, por
mais rigoroso que seja o método aplicado na hermenêutica, deixar de ser
influenciado por suas próprias convicções ideológicas ou políticas.
Sendo
assim, nos atuais tempos de mobilizações populares, sugere-se a todo jornalista
que formule a seguinte pergunta a um jurista quando este for instado a falar de
alguma medida governamental: de que lado você está?
* Andre Augusto Salvador Bezerra é mestre e doutorando na USP, juiz de direito
e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
Fonte: Observatório da Imprensa