segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Cacique Marcos Verón - Réus são condenados

Egon Dionísio Heck
Assessor do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) Mato Grosso do Sul
 
"Os réus Carlos Esteves, Jorge Cristaldo e Estevão Romero são condenados a doze anos e três meses de prisão em regime fechado”. Foram condenados por formação de quadrilha, tortura e seqüestro a mão armada. Eram dez horas e oito minutos da noite de 26 de fevereiro de 2011, quando a Juíza Paula Mantovanni declarou encerrado o julgamento. De pé, em silêncio, todos os protagonistas e pequena platéia, foram lentamente se retirando da pequena sala de júri Esplanada no subsolo da Justiça Federal Regional, próximo à avenida Paulista em São Paulo.

"Não é bem o que nós esperávamos” declarou um dos filhos do assassinado cacique Marcos Verón. As reações e opiniões foram se dividindo: "Gosto amargo de quem ganhou, mas não levou”; "Os réus certamente devem ir comer churrasco pago por seu Jacinto Honório, dono da fazenda Brasília do Sul, onde o cacique Marcos foi assassinado dia 13 de janeiro de 2011”.

Os trinta e cinco Kaiowá Guarani, que durante os cinco dias participaram desse júri Histórico, fizeram um ritual de agradecimento na calçada, antes de entrar no ônibus e se dirigir até a Casa da Acolhida na periferia de São Paulo. Seus corações estavam mais aliviados, sua dor era menor, porém, a alegria não estava estampada em seus rostos. Procuravam entender melhor o que significava essa condenação e essa absolvição.

Uma vitória parcial, como explicara o Procurador Marco Antonio Delfino. Que por sua vez explicou que com o resultado do júri não apenas ficou evidenciado as bárbaras violências perpetradas contra a comunidade indígena, como também foi claramente identificado como autor das coronhadas que mataram o cacique Verón, Nivaldo, que era o capataz da fazenda e o mandante o fazendeiro Jacinto Honório da Silva Filho. Esses são réus no segundo processo e deverão agora ir a julgamento.

Julgamento histórico – novo ciclo para os Kaiowá Guarani

Só o fato do julgamento ter se realizado na cidade de São Paulo, com o máximo de isenção dos jurados, já é uma vitória. Aliás, a defesa manifestou-se inconformada com o desaforamento do julgamento de Dourados para São Paulo. Foi o primeiro caso desse gênero, relacionado aos povos indígenas. Também foi o segundo julgamento de matadores de índios no Mato Grosso do Sul, depois do julgamento dos assassinos de Marçal Tupã’i, no final da década de oitenta.

Naquela ocasião os réus foram absolvidos. Agora foram condenados, embora não o tenham sido pelos crimes de homicídio e tentativa de homicídio.

Para o procurador federal em São Paulo e coordenador da Acusação, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, que brilhantemente e com muita sensibilidade sustentou as razões da condenação dos réus, "é preciso por fim ao ciclo de violência no Mato Grosso do Sul, onde as lideranças indígenas continuam sendo assassinadas. Precisamos colocar fim a esse ciclo de sangue e violência. Sem a terra os povos indígenas não conseguem ter um equilíbrio emocional e material, precisamos fazer justiça aos que assassinaram as lideranças Marçal, em 1983 Samuel Martin, em 2001, Julite Lopes, em 2007, Genivaldo, em 2009 e tantos outros. Estamos pedindo Justiça. Justiça e não vingança. Justiça e não impunidade.”

Carinho e solidariedade

Impressionou como foi se criando um clima de apoio e solidariedade com a delegação Kaiowá Guarani nestes seus seis dias em São Paulo. Não tem sido fácil. Uma rotina totalmente diversa à realidade de suas aldeias no Mato Grosso do Sul, despertava ora curiosidade, ora cansaço, ora problemas de saúde. Desde a madrugada, até altas horas da noite enfrentaram o trânsito dessa megalópole, sem perder o bom humor.

Além disso, o ambiente do júri e as permanentes alusões ao assassinato do Cacique Verón tornavam o dia a dia marcado por muita dor e tristeza, só superado pelo carinho recebido de muitas pessoas e instituições que foram solidários a eles. A todos, eles deixam seu sincero agradecimento.

Como esta foi apenas uma das etapas do processo dos réus do crime, esperam numa próxima oportunidade continuar sendo tão bem recebidos e apoiados em São Paulo, ampliando o quadro de apoiadores que se tornam cada vez mais sensíveis à causa indígena.

Povo Guarani Grande Povo
São Paulo, 26 de fevereiro de 2011


Fonte:Adital

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Julgamento do assassinato do Cacique Veron

Egon Dionísio Heck
Assessor do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) Mato Grosso do Sul

No terceiro dia do julgamento foram ouvidas vítimas e testemunhas de acusação e defesa. Foram os depoimentos que mais estavam sendo aguardados, uma vez que os depoentes eram os mais diretamente afetados pelas violências que resultaram no assassinato do cacique Marcos Veron Avá Taperendy, líder Guarani Kaiowá, no dia 13 de janeiro de 2003.

Ladio Veron, filho mais velho do cacique assassinado, e que sofreu espancamentos, tortura e ameaças de atearem fogo em seu corpo, fez o depoimento mais contundente e detalhado da bárbara agressão sofrida, tendo sido amarrado e jogado na carroceria de uma camionete, juntamente com seu pai, agonizante.

Ladio, após o depoimento já reintegrado ao grupo de seus familiares e amigos, declarou que "espera que a justiça agora seja feita. Que o assassinato de seu pai não fique impune, bem como outros assassinatos de líderes indígenas Kaiowá Guarani.” Bastante sereno e confiante declarou: "só ficarei mais tranqüilo na hora que terminar o julgamento com a punição dos assassinos”.

Adelcia Martins Veron, a primeira vítima a depor, disse "a dor que passei é como se tivesse sido ontem. Uma coisa muito triste. Vi com meus próprios olhos, o massacre a judiação, a lamentação e gritos das crianças e mulheres. Tudo isso fui relembrando enquanto fui falando no depoimento.

O tiroteio que a gente sofreu, é um grande sentimento que a gente vai sentindo de novo. A coisa mais triste que aconteceu foi ver o nosso cacique ir morrendo aí sem a gente poder fazer nada.

Ele morrendo, sem xingar ninguém. Morrendo como uma abelha. Uma dor do povo índio de Takuara dando a sua vida”.

Relatou ainda "Eu não agüentava, chorava muito, vendo toda aquela tortura. Meu coração ficou doendo vendo toda aquela judiação. Espero que tenha justiça. Que os jurados sintam no seu coração aquela dor que sofremos com o assassinato do nosso cacique. Esperamos continuar vivendo com nossas crianças do jeito que ele nos ensinou, na reza, no guachiré. E assim continue nossa alegria na aldeia Takuara. Ele deu a vida pela terra e pelo futuro das nossas crianças. Os fazendeiros mataram nosso cacique sem compaixão, mas nós vamos continuar a vida do nosso cacique”.

Por fim, ressaltou "Que o governo possa ouvir e sentir onde o sangue foi derramado e demarque a nossa terra, para que a gente possa viver tranqüilo em nossa terra, com nossas crianças. Hoje quem lidera o grupo indígena da aldeia Takuara é o filho mais velho do cacique Marcos Veron, Ládio Veron Avá Taperendy’i”.

Araldo Veron, primeiro depoente de testemunha de acusação, declarou "estava com grande sentimento e ansiedade esperando há muito tempo esse julgamento. Creio muito na justiça que vai dar a sentença para os que mataram meu pai. Fiquei muito contente porque o julgamento está acontecendo e, agora, esperamos a punição dos assassinos do nosso pai Marcos Verón.

Recordou das pessoas que os tem ajudado nessa luta. "Agradecemos a todos os que nos apoiaram e deram força como a Fiona da Survival, os amigos do Cimi e muitos outros por esse Brasil e mundo afora, que assistiram e apóiam a nossa causa, dando força nessas horas difíceis”.

Finalizou dizendo "que a nossa comunidade esteja contente e todos os professores e alunos do Teko Arandu, que deram muita força para nós”.

Rosalino Ortis ,líder aldeia Yvy Katu, município Japorã disse: ”queremos que sejam punidos os assassinos do líder indígena guarani Marcos Verón. Agradecemos por ter acontecido o julgamento e esperamos que a justiça venha para julgar o assassinato de outras lideranças indígenas, mortas pelos pistoleiro dos fazendeiro no Mato Grosso do Sul”.

Ressaltou ainda, "Agradeço a outras liderança, Funai ,Cimi, Ministério Público Federal e Polícia Federal . Espero que não aconteça mais conflitos por causa de nossas terras”.

Franscisco Gonçalves, importante liderança guarani declarou "estou confiante na justiça, que esses assassinos sejam punidos pela violência e tortura cometidas contra o cacique Marcos Veron, índio Guarani e dos outros líderes assassinados pelos pistoleiros dos fazendeiros no Mato Grosso do Sul. Agradeço à Justiça Federal e a todas as liderança indígena Guarani Kaiowá”.

São Paulo, 24 de fevereiro de 2011
Com colaboração da delegação Kaiowá Guarani no julgamento em São Paulo
Povo Guarani Kaiowá Grande Povo

Fonte:Adital 


Quem matou o cacique Veron?

Egon Heck e Vanessa Ramos

No segundo dia de julgamento, seis testemunhas foram ouvidas.

Antes de clarear o dia quase todos os Guarani Kaiowá já estão de pé. Alguns tomando chimarrão e arrumando a mala com os poucos pertences trazidos. Hora de fazer o ritual de despedida na aldeia dos parentes Guarani Mbyá no Pico do Jaraguá. No ônibus é o momento de fazer as pinturas no rosto e encher-se de coragem, força e alegria para mais um duro dia de julgamento.
"Estamos aqui pedindo justiça pelo assassinato do cacique Marcos Verón - Povos Indígenas Guarani Kaiowá” são os dizeres das faixas que vão sendo colocadas e seguradas pelos membros da delegação indígena. Alguns repórteres já estão apostos e vão registrando o início de mais uma jornada.

No decorrer do segundo dia do julgamento os trabalhos fluíram com bastante tranqüilidade. Todas as seis vítimas ouvidas testemunharam com muita precisão e detalhes os acontecimentos ocorridos entre os dias 11 e 13 de janeiro de 2003. Impressiona como, depois de nove anos, as testemunhas se referiam aos fatos como se "tivessem ocorrido ontem”, afirma Adelcia Martins Verón, cujo depoimento foi em Guarani com o tradutor Tonico Benites.

Foram mais de três horas em que ela não apenas narrou o que ocorreu naqueles dias como respondeu a todas as indagações: as dos procuradores da acusação e dos advogados de defesa. O momento de maior emoção se deu quando a depoente chorou ao narrar o ataque dos fazendeiros e seus capatazes, que "fortemente armados”, agrediram brutalmente os Kaiowá acampados.

A platéia ora cheia, ora esvaziada, fez parte do cenário. Do lado esquerdo, os Kaiowá tiveram presença permanente. À direita, os familiares dos réus e dos fazendeiros. Permeados nessa platéia estavam jornalistas e estudantes de direito, os quais se mostraram sensíveis aos parentes e testemunhas Kaiowá.

Atrás dos procuradores de acusação e dos advogados de defesa estão duas grandes fotografias de Marcos Verón, uma com pintura e outra sem, que evidenciam o rosto e o olhar marcantes. As testemunhas depunham de frente ao retrato do cacique. Do lado das testemunhas, sentadas, estavam os três réus Carlos, Jorge e Estevão.

Um momento de tensão para as testemunhas foi quando a juíza Federal Paula Mantovani e os procuradores de acusação pediam que olhassem para o lado esquerdo e reconhecessem os acusados do assassinato. Algumas pessoas, no fundo da platéia, até mesmo se levantavam para acompanhar qual seria a resposta. Outros, comentavam o olhar de penumbra dos advogados de defesa.

No público, destacou-se a presença de Antônio Mendonça, do povo Xucuru de Ororubá que esteve em todos os momentos, desde o primeiro dia de julgamento. Ainda, no segundo dia, um grande grupo do povo Pankararé, acrescido da cacique Alaíde foram prestar solidariedade aos parentes. Alaíde estava comovida com a situação, inclusive por se lembrar de seu pai, Ângelo Pereira Xavier que na década de 1980 também foi violentamente assassinato em sua região, na Bahia.

Outra testemunha foi Geisabel Verón, filha de Marcos Verón, que relatou: "eu estava grávida e eles riam de nós”. Durante sua fala, ela olhou para os réus e apontou Jorge e Estevão como participantes do crime.

O jovem Reginaldo Verón, neto do cacique assassinado, chorou ao depor a cena da violência ocorrida com a comunidade e com o seu avô. Ele, atingido por uma bala relatou "até hoje sinto dor na perna. Eu era um atleta e acabaram com a minha vida. Hoje, mesmo sendo jovem eu não posso sequer praticar esporte porque a bala está alojada dentro do meu corpo”. No momento em que foi solicitado pela juíza para identificar os réus ele disse desconhecer. Depois, ao ser indagado pelo procurador de acusação se sentia medo, por ocasião do reconhecimento dos réus, ele disse: "Sim, estou com medo”.

Hoje, terceiro dia estão ouvidas importantes testemunhas de acusação, iniciando-se a seguir a oitiva das testemunhas de defesa.

A cada depoimento vão ficando mais claras as circunstâncias e os autores da violência praticada naquela madrugada do dia 12 de janeiro de 2003, com vários feridos, espancados e a morte do cacique Veron. Os representantes indígenas Kaiowá Guarani seguem tranqüilos e confiantes acompanhando atentamente o transcorrer do julgamento, como afirma Adelcia: " A terra clama por justiça. A verdade vai prevalecer”!

São Paulo, 23 de fevereiro de 2011.

Fonte:Adital

Em busca da verdade e da justiça. Julgamento dos assassinos do cacique Marcos Veron

Egon Dionísio Heck
Assessor do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) Mato Grosso do Sul

A cidade de São Paulo, esse grande formigueiro humano, de mais de 12 milhões de pessoas agitadas, será, nesta semana, um espaço de muita atenção e confiança dos Kaiowá-Guarani.

O reinício do julgamento dos assassinos do Cacique Marcos Veron, neste dia 21 de fevereiro, teve grande repercussão na mídia local e nacional. Trata-se de um acontecimento raro, pois poucos matadores de índios e, em especial dos Guarani, foram até hoje julgados. Outro fato que chama atenção é o deste julgamento ter sido deslocado de Dourados, no Mato Grosso do Sul, para São Paulo. Os Procuradores da República entenderam que naquela cidade poderia não haver a isenção necessária para o julgamento deste crime.

Quase quarenta Kaiowá Guarani vieram a São Paulo para acompanhar de perto e participar do julgamento. São testemunhas de acusação e a vizibilização dos atingidos por este crime.

São a acusação de uma história de violências e impunidade sem precedentes na história recente do nosso país. Filhos, parentes e amigos de Marcos Veron e lutadores da justiça estarão nesse pequeno espaço próximo ao centro nervoso e econômico de São Paulo, a Avenida Paulista, nos próximos dias, clamando por justiça, fim da impunidade e reconhecimento das terras Kaiowá-Garani, razão do assassinato do cacique Marcos.

Eles vêm de uma história marcada pelos massacres, violência, usurpação de suas terras, destruição das florestas e da natureza. Eles vêm da terra em que se exalta um tipo de progresso e desenvolvimento através do agronegócio, concentrador e excludente, da monocultura e dos transgênicos, do agrotóxico, de profundo impacto na natureza e poluição das águas e da terra. Eles vêm do território Guarani, dos índios sem terra, dos acampamentos e confinamentos deste povo. Eles vêm do sofrimento, da fome, da injustiça e da impunidade.

Vêm apenas pedir justiça e, do alto de sua heróica resistência e dignidade, pedir punição.

No primeiro dia do julgamento, o tempo foi ocupado com a escolha dos sete jurados. Dentre os candidatos, a defesa dos réus vetou três mulheres, o que, para um dos antropólogos presentes, sinaliza o afastamento da sensibilidade maior das mulheres e os possíveis impactos de semelhante crime. Depois foram lidas as peças dos autos solicitadas pela acusação e a defesa, onde se explicitam os argumentos das partes, no assassinato.

Dentre os Kaiowá Guarani presentes no pequeno plenário, onde estavam umas 30 pessoas, estavam três filhas e sete netos do cacique assassinado. Ao ouvirem a leitura de depoimentos colhidos pela policia da região, permaneceram num indignado silêncio.

Desabafaram depois de encerrada a sessão, antes das cinco horas da tarde, pela ausência dos testemunhas de acusação, que foram impedidos de embarcar no aeroporto de Dourados, sob a alegação de que, pintados e de cocares, não poderiam embarcar. Posteriormente se deslocaram até Campo Grande e daí a São Paulo. "Incrível como se montam mentiras e distorcem totalmente os acontecimentos para tentar encobrir um crime tão bárbaro como o assassinato de meu pai”, desabafou Valdelice.

Depois do encerramento dos trabalhos do julgamento neste primeiro dia, os Kaiowá Guarani fizeram um rápido ritual de agradecimento e pedido aos espíritos de seus antepassados para que os protejam, e iluminem os que vão julgar o assassinato, para que a paz e a justiça volte a reinar e suas terras sejam reconhecidas, devolvidas e respeitadas conforme as leis nacionais e internacionais.

Após o encerramento dos trabalhos, vieram para a aldeia Guarani Mbyá, no morro do Jaraguá, na periferia de São Paulo. Ali foram acolhidos com muito carinho pelos seus parentes, num gesto de solidariedade e apoio Guarani. Ali lhes ofereceram jantar e o espaço para descansar os corpos cansados depois de longas viagens, desde o Mato Grosso do Sul.

É um julgamento histórico para os Kaiowá-Guarani e os povos indígenas do país. Este povo não aguenta mais tanta violência e impunidade.

Campanha Povo Guarani Grande Povo
Aldeia do Jaraguá, São Paulo, 21 de fevereiro de 2011.

Fonte:Adital


terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

DIREITOS, APENAS


Reno Viana *

Hoje ouvi um estudante fazer interessante comentário. Segundo ele, nos meus textos eu defendo os direitos humanos, mas no dia-a-dia da Vara do Júri onde atuo estou sempre mandando os réus para a cadeia. Aparentemente singelo, o questionamento do jovem estudante na verdade aborda um assunto de elevada complexidade.

Nos dias atuais, é difícil dizer com exatidão qual a função social do Poder Judiciário. Em minha opinião, ainda mais complicado é entender os motivos que levam um indivíduo a abraçar a profissão de Juiz de Direito. As causas patológicas são relativamente bem conhecidas e alguns casos já fazem parte do folclore forense. Mas são complexos os motivos que levam uma pessoa comum, dentre tantas opções profissionais, a optar pela carreira da magistratura.

Saindo do âmbito meramente individual, buscando uma análise coletiva do problema, seria o caso também de questionar se todo aparato judicial seria na realidade socialmente necessário. Ao que parece, no atual estágio evolutivo da humanidade, a abolição completa das leis penais e da estrutura jurisdicional ainda é uma utopia, sem qualquer perspectiva imediata nesse sentido.

Dessa forma, em todos os lugares, existe sempre um indivíduo cuja profissão é mandar seus semelhantes para a cadeia.

Aqui na cidade de Vitória da Conquista, interior da Bahia, especificamente na Vara do Júri, trabalha um sujeito desses. No caso, sou eu. Contudo, apesar da profissão que exerço, possuo a característica peculiar de não acreditar na eficácia social do encarceramento.

Como admitir essa contradição ?

Na prática, estive sempre mandando pessoas para a cadeia. Era necessário fazer isso, principalmente em situações graves. Um dos motivos principais era para impedir a revolta da população. Nunca aconteceu nas minhas comarcas, mas acompanhei relativamente de perto situações em que a população revoltada depredava os prédios públicos, incendiava veículos, linchava supostos criminosos, tudo isso supondo que fazia justiça com as próprias mãos.

No Brasil, não sei bem a razão, em certos setores da sociedade a expressão direitos humanos passou a ter um sentido pejorativo. Sua defesa considerada como coisa de malucos. Convivemos com o escândalo de ver pessoas socialmente progressistas defenderem posições reacionárias em matéria criminal. Essa postura equivocada certamente decorre da desinformação. Mas chega a ser surpreendente conhecer até mesmo jornalistas, sempre tão avançados em outras áreas, que apresentam também eles essa visão distorcida sobre esse assunto.

Mas, como se sabe, a iniquidade social no Brasil tradicionalmente tem sido perversa e cruel. Nesse contexto, sinistra e aterrorizante a atrasada realidade criminal.

Em tal cenário sombrio, podemos até deixar de utilizar a expressão direitos humanos.  A mera palavra “direitos”, simplesmente, já pode apresentar uma dimensão perturbadora. Por incrível que possa parecer, em determinadas situações essa palavra chega a ser revolucionária.

Então, se mando pessoas para a cadeia, é porque essa é a minha profissão.

Mas onde é possível, como neste texto, eu defendo princípios teóricos, por dever de consciência. Em outras situações, recorro simplesmente à efetividade do direito vigente. Sem adjetivações.

Mas sem nunca esquecer a lição aprendida com o Professor Fábio Konder Comparato, aquela de que no ápice do ordenamento jurídico situa-se o sistema de direitos humanos !



* Reno Viana é Juiz de Direito na Bahia e membro da Associação Juízes para a Democracia.



O Professor Fábio Konder Comparato, em 2010, 
na sede da Associação Juízes para a Democracia, 
fotografado pela Juíza Dora Martins.


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

O bom ladrão

por Vladimir Aras*
Era o verão de 1994. A maioria das comarcas da belíssima Chapada Diamantina, na Bahia, estava sem promotor e sem juiz. Defensor público ainda hoje é um luxo impensável. Naqueles anos então nem se falava. Do lado oriental da Chapada, estava eu, recém-ingresso no Ministério Público da Bahia, turma de 1993. Do outro lado, no rumo de Brasília, estava Almiro Sena Soares Filho, titular da comarca de Seabra, colega que neste mês de janeiro foi nomeado para o cargo de Secretário de Justiça,Cidadania e Direitos Humanos do Estado.
  

Como era de praxe durante as férias forenses de janeiro, tínhamos de suprir as deficiências de lotação e fazer o périplo pelas cidades diamantinas para despachar os autos com carga ao Ministério Público Estadual. Aviar diligências, denunciar suspeitos, preparar alegações finais. Dar conta do que houvesse. Minha base era a pequena Utinga, na Chapada Setentrional, sede da comarca de mesmo nome que acabara de ser instalada e que englobava os municípios de Wagner – antiga Cachoeirinha, que prosperou após a fundação em 1906 do Instituto Ponte Nova, por presbiterianos norte-americanos da Missão Central do Brasil – e a minúscula Bonito, situada 990 metros acima do nível do mar e que já despontava na produção de café e, acreditem, morangos.

Naquele mês, numa canícula insuportável, percorri um trecho da BA-122 e depois parte da BR-242 (a famosa Bahia-Brasília, então totalmente esburacada) num Gol preto, placa MK-9999, ano 1993, comprado de segunda mão poucos dias antes. O carro não tinha ar, mas tinha um imprescindível aerofólio traseiro, “tunagem” essencial para fazer bonito no sertão.

Ao alcançar a rodovia federal, tomei o rumo da capital das Lavras Diamantinas, a bela Lençóis, antiga cidade garimpeira que chegou a sediar um vice-consulado francês em pleno século XIX. Num salto de mais de um século no tempo, naquele recesso forense de 1994, eu teria de visitar as comarcas de Andaraí, Lençóis, Palmeiras, Iraquara e Souto Soares, e atuar como auxiliar na Promotoria de Seabra, ali pertinho do centro geodésico da Bahia, onde fica o majestoso Morro do Pai Inácio. Esquecendo os buracos e os perigos da estrada, a viagem pelos contrafortes, planaltos e vales da Diamantina era uma agradável aventura. Jacas e melancias sempre à mão. Cachoeiras e riachos ao alcance de uma caminhada. Paisagens lindíssimas no horizonte. Simpáticos caroneiros na estrada. Junto comigo levava Alceu Valença, Geraldo Azevedo e Almir Satter. La Belle de Jour e Tocando em Frente eram minhas companheiras preferidas. Não vou mentir. De vez em quando também punha Leandro e Leonardo e Abba para tocar. Não era CD nem mp3. Só tinha fita cassete. E era bom.

Sempre gostei muito de Lençóis. Um tio materno fora juiz de Direito na cidade. Numa das
férias de infância que lá passei, minha mãe achou uma cobra dentro do forno da casa.
Ninguém teve tempo de ver se era uma jiboia ou uma sucuri, constritoras “do bem”, ou se era uma mortal jararaca. Só sei que o susto foi enorme. Anos antes, eu estivera na cidade numa excursão da Escola Experimental, na qual estudei nos anos 1980. Naquela viagem quase morri afogado ao escorregar sem querer pelo tobogã do Rio Mucugezinho. Um terror. Não sei a professora Amabília Almeida, a “Bila”, saudosa diretora da escola, me perdoou a travessura. Não me afoguei mas ela quase teve um treco.

Voltei mais de uma década depois. Ao chegar ao centro de Lençóis, então habitada por umas 8 mil almas deste mundo e outras tantas do outro, fui direto para a sede da Delegacia de Polícia, para verificar como andavam os inquéritos. Na verdade, os casos não andavam. Ficavam parados e modorrentos à espera de um impulso miraculoso. Aliás, ali quase nada se movia, salvo as águas do Rio Serrano, despencando da encosta por entre os grotões. A cidade ainda não tinha despertado definitivamente para o ecoturismo e o turismo de aventura como hoje. O aeroporto nem existia. Havia poucas pousadas e ainda era possível hospedar-se no hoje ótimo hotel Canto das Águas por preços módicos. O cenário era de uma vilinha tirada de uma novela de Dias Gomes.

Foi ali embaixo, ó. O prédio é de 1860.

Como em muitas cidades do interior, na época a delegacia funcionava sob o prédio da Prefeitura Municipal, na parte posterior, numa das muitas ladeiras lençoenses. Acho que era um tradição portuguesa. A própria Salvador tivera edifício assim. No subsolo do Palácio Tomé de Souza, sede da Câmara Municipal da primeira capital do Brasil, funcionara a cadeia pública da época colonial. Era a Casa de Câmara e Cadeia, fundada no século XVI. Lençóis tivera algo semelhante. Em cima ficava o governo municipal; embaixo os que governam sem leis. Engraçado é que esse pessoal às vezes troca de lugar e corremos o risco de nem notar a diferença.

Dei a volta no paço municipal e lá fui eu, todo enfatiotado no meu paletó barato e calorento, conversar com o delegado. Eu era 105 gramas mais gordo que o ex-senador Marco Maciel. Venci o vento e a ladeira mas logo percebi que o setor policial do prédio estava fechado. Chamei e ninguém atendeu, embora fosse uma tarde de segunda-feira. Eu sabia que ali havia uma carceragem e me esgoelei tentando atrair a atenção do carcereiro. Finalmente, ouvi uma voz tímida ao fundo. Com ar austero – como convinha a um menino de 23 anos que de repente virara “autoridade” – troquei algumas palavras com a pessoa e lhe pedi educadamente que viesse abrir a porta e o portão externo de ferro para que eu entrasse.
- Eu posso até fazer isso, doutor… Mas, se fizer, estarei descumprindo ordem do juiz. Eu tô proibido de sair daqui -, ele respondeu.
Intrigado, indaguei o porquê. Ele me disse:
- O pessoal do plantão me deixou aqui para eu tomar conta da delegacia. Sou o único preso da cidade, doutor.

Era mesmo! Porém, ele continuou assim por pouco tempo. A população carcerária de Lençóis logo seria reduzida a zero. Quando cheguei ao fórum, pedi o processo do Zé (era um furto qualquer), examinei a papelada e pedi ao juiz da comarca vizinha que mandasse soltar o detido. Por bom comportamento, é claro. E também por razões humanitárias. Um calor daquele ninguém aguentava. Já era castigo suficiente.

* Vladimir Aras é Procurador da República e Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.



quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Eu, Juiz de Direito, confesso...



Eu, Juiz de Direito, confesso...

Gerivaldo Alves Neiva*

Esta confissão tem três inspirações: o Juiz de Direito Rosivaldo Toscano Jr, o Defensor Público Rafson Ximenes e Sigmund Freud. Ele mesmo! Calma, gente... Vou explicar.
Pela primeira vez, em mais de 20 anos de magistratura, li um texto em que um Juiz de Direito comenta sobre seus próprios erros e arrependimentos. Este texto é do Juiz Rosivaldo Toscano Jr, do Rio Grande do Norte, e está publicado em seu blog na Internet.[1] De forma sincera e real, Rosivaldo concluiu: “somente os juízes absolutamente inexperientes não tem seu rol secreto de arrependimentos. E para alguns, inconfessáveis até para si próprios.”. Acredito que nenhum Juiz passa incólume por este texto. A menos que não se imagine humano. Nem precisa que seja “demasiadamente humano”. Eu, por exemplo, que sou apenas humano, depois da leitura, puxei um imenso rol de arrependimentos pelo que fiz e pelo que deixei de fazer nesses mais de 20 anos de magistratura.
Na verdade, ingressei na magistratura da Bahia em 1990 e imaginava, depois de 06 anos de advocacia, que estava absolutamente preparado para ser Juiz de Direito. Ledo engano. Hoje sei que sabia muito pouco ou quase nada sobre a vida e sobre o Direito. Para comprovar isso, depois de muitos anos retornei à minha primeira Comarca (Urandi, no sudoeste da Bahia) e lá conversei com um advogado da mesma época (Dr. Caio Leão) e ele me fez elogios sobre minha atuação na Comarca. Respondi ao advogado que, de fato, tinha feito tudo com muita dedicação e zelo, mas que somente agora – na época, 10 anos depois de ter saído de lá – me sentia preparado para assumir uma Comarca. São passados mais de 10 anos desse episódio e continuo pensando que somente agora estou preparado para assumir minha primeira Comarca. Neste caminhar, não sei o que estarei pensando com mais 10 anos de magistratura...
Com relação ao Defensor Rafson Ximenes, também li em seu blog na Internet[2] uma crítica contundente, como poucas vezes li, sobre a conduta de alguns Juízes de Direito. Com coragem e franqueza, o ilustre Defensor já começa seu texto provocando: “Me embrulha o estômago participar de audiências em que se julga a possibilidade de livramento condicional. Algumas perguntas que alguns magistrados fazem irritam profundamente”. Ao final, fazendo um trocadilho, refere-se à ideia de “concessão” de benefício de livramento condicional nestes termos: “E para terminar, benefício é o caramba! (a palavra certa no final era outra, mas vá lá. Vamos jogar um baralho.)”. Não preciso escrever aqui o resultado dessa mistura de caramba com baralho!
Eu não tenho como negar que também já dei muitos “conselhos” e “esporros” em presos quando da “concessão” de algum benefício. Já dei conselhos para que estudassem, frequentassem uma Igreja, procurassem um emprego, que deixassem de “mexer no alheio” e outras bobagens mais...  Da mesma forma, em dias de mau humor, já dei “esporros”, ameacei de nova prisão e, como diz Rosivaldo, outras bobagens “inconfessáveis”.
Agora, vamos de Freud. Em um escrito de 1917, Freud se propõe a “descrever como o narcisismo universal dos homens, o seu amor próprio, sofreu até o presente três severos golpes por parte das pesquisas científicas”. São as feridas narcísicas da humanidade.
A primeira dessas feridas, segundo Freud, teria sido causada pelas pesquisas de Copérnico no desenvolvimento da teoria do heliocentrismo, ou seja, a terra não é o centro do universo e não passa de um pequeno planeta que gira em torno do sol. A segunda ferida teria sido causada por Darwin no desenvolvimento da teoria do evolucionismo, ou seja, o homem não tem ascendência divina, mas dos macacos. Por fim, a terceira ferida narcísica da humanidade, segundo o pretensioso Freud, teria sido causada por ele mesmo com sua teoria do inconsciente, ou seja, o homem deixa de ser o “senhor de sua própria casa” para dar lugar ao inconsciente. Assim, para Freud, “a mente não é um coisa simples; ao contrário, é uma hierarquia de instâncias superiores e subordinadas, um labirinto de impulsos que se esforçam, independentemente um do outro, no sentido da ação, correspondentes à multiplicidade de instintos e de relações com o mundo externo, muitos dos quais incompatíveis e antagônicos”. Nesse confronto entre o ego e o inconsciente, portanto, estaria explicada a diferença entre aquilo que é “mental” e o que é “consciente”, ou seja, ainda segundo as palavras de Freud, “o que está em sua mente não coincide com aquilo que você está consciente; o que acontece realmente e aquilo que você sabe, são duas coisas distintas”.[3]
Mas qual o sentido mesmo desta confissão? Pois bem, retomando nossas inspirações iniciais, primeiro temos um Juiz que nos assusta ao revelar seu rol secreto de arrependimentos; depois, um Defensor Público que expõe sua indignação contra os juízes que se imaginam poderosos ao “concederem benefícios” a pobres e excluídos e, por fim, Freud nos coloca diante do nosso narcisismo ferido por Copérnico, Darwin e por ele mesmo e nos incomoda com a afirmação de que não somos senhores de nossa própria casa/mente. Além disso, ao nos mostrar as feridas narcísicas da humanidade, Freud termina despertando nossa curiosidade na busca das nossas próprias feridas narcísicas relacionadas ao Direito[4], ou seja, até que ponto nosso narcisismo jurídico está sendo desmoronado pelos fatos históricos e pela ineficiência do Direito no papel de avalista das promessas da modernidade e de um contrato social cada vez mais restrito a uns poucos privilegiados?
Sendo assim, eu, Juiz de Direito, confesso, diante dessa crise sem fim do Direito, cada vez mais reduzido ao estudo das normas e dogmas, que me sinto como Narciso diante de um espelho quebrado; confesso, também, que ainda não consegui me desvencilhar por completo, mesmo pensando que sim, da formação dogmática e normativista do Direito que me incutiu o ensino jurídico e, por fim, confesso que ainda prevalece em meu inconsciente (senhor de minha casa), embora continue pensando que não, a ideia de que é o Juiz quem “concede benefícios” ao preso, ao contrário de lhe reconhecer como “sujeito” e lhe garantir direitos. Como prova disso, em uma de minhas últimas decisões postadas aqui no blog[5], “concedi” a liberdade provisória a um preso acusado de furto de um rádio de pilha e um aparelho de som. Por que, de outro lado, não lhe foi simplesmente “garantido” o direito à liberdade em face da inexistência das hipóteses que justificassem a sua prisão preventiva? Como se diz popularmente e verdadeiramente, “Freud explica...”
Ora, conceder é infinitamente diferente de garantir. Conceder (do latim) significa dar, permitir, facultar, outorgar; garantir (do francês), de outro lado, tem o sentido de afirmar, certificar, asseverar, tornar certo e seguro. O direito à liberdade, portanto, não é do Juiz, mas da pessoa a quem a Constituição garante esse direito. Como pode o Juiz, aliás, conceder ou dar a alguém o que não dispõe? Em consequência, quem concede tem a possibilidade de escolher ao seu livre arbítrio o que quer conceder; de outro lado, quem garante precisa fundamentar e justificar aquilo que torna como certo e seguro. Sendo assim, concordando com Lenio Streck, decidir não é sinônimo de escolher. A escolha será sempre parcial, arbitrária e discricionária; a decisão, de outro lado, implica em uma interpretação estruturada e em consonância com o Direito e, sobretudo, com a Constituição.[6]
Agora, mais aliviado, sei que está escrito em 1Jo 5,17 que “toda a iniquidade é pecado, e há pecado que não é para morte.” Eu não creio, em vista do que andei praticando como magistrado, que tivesse pecado “para morte” e sei também que a penitência proposta no fim da confissão, segundo o sacramento católico, “não é um castigo; mas antes uma expressão de alegria pelo perdão celebrado”.
Por fim, confessado o “pecado” e aceita a penitência de (i) afastar Narciso do Direito, (ii) continuar estudando e buscando um sentido para o Direito nesta quadra da história da humanidade e (iii) nunca mais imaginar que cabe ao Juiz “conceder” direitos a seu bel prazer a quem quer que seja, mas de “garanti-los”, em face da Constituição, a quem os detenha, não me sinto castigado, mas alegre pela confissão e pelo perdão. Por fim, talvez meu ego esteja mais certo do que meu inconsciente da importância de cumprir a penitência proposta, mas mesmo assim, ao procurar um rumo e sabendo que “tal coisa existe”, me conforto mais uma vez com Freud: “E se você não tem informação de algo que ocorre em sua mente, presume, confiante, que tal coisa não existe”.[7]
* Juiz de Direito, membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), 15 de fevereiro de 2011.

[1] http://rosivaldotoscano.blogspot.com/
[2] http://pensandoeseguindo.blogspot.com/
[3] In Obras Completas de Sigmund Freud, vol XVII, Uma dificuldade no caminho da psicanálise (1917), Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 149.
[4] Neste sentido, Salo de Carvalho: “O projeto jurídico penal do terceiro milênio, em processo contínuo de autoencantamento, impõe verdade de tal ordem que adquire contornos de equívoco visto a excessiva crença na capacidade de o instrumental dogmático atingir a proteção dos interesses coletivos e transindividuais. Daí porque absolutamente narcisista a retórica do direito penal contemporâneo que realiza, como todas as forças, incisivo investimento pulsional em si mesmo”. (Carvalho, Salo. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2008, p.96.
[5] http://gerivaldoneiva.blogspot.com/2011/02/cada-qual-no-seu-cada-qual-juiz-nao-e.html
[6] In O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010.
[7] Ob. cit., p. 152.
 
 
 
 

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Ministério da Justiça premiará trabalhos sobre tráfico de pessoas

Karol Assunção

Para estimular a reflexão e a produção de trabalhos sobre o tráfico de pessoas, a Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça (MJ) e o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) lançaram, no final do ano passado, dois prêmios de enfrentamento ao tráfico: o Prêmio Simone Borges Felipe e o II Prêmio Libertas. As inscrições vão até o dia 18 de março.

Os/as interessados/as em participar devem entregar os trabalhos pessoalmente – ou enviar por Correios ou via Sedex – para o setor de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (ETP) da Secretaria Nacional de Justiça do MJ (Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Palácio da Justiça Raymundo Faoro, Anexo II, 2° andar, sala 227, CEP: 70.064-900, Brasília – DF). Os documentos devem estar em envelope lacrado com o título do Prêmio na parte externa e de acordo com as informações especificadas nos editais.

O “Prêmio Simone Borges Felipe: Abraçando o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas” é destinado a brasileiras ou estrangeiras que trabalham ou participam de: Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas; Postos Avançados de Recepção a Brasileiros/as Deportados/as e Não Admitidos/as; Serviços Públicos de Atendimento às Vítimas do Tráfico de Pessoas; e Organizações da Sociedade Civil que realizam atividades de enfrentamento ao tráfico. A ideia é divulgar as experiências exitosas na área de combate ao tráfico.

Já o “II Prêmio Libertas: Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas” é voltado para universitários, graduados e população em geral e tem o objetivo de estimular a produção de pesquisas que auxiliem na elaboração de políticas públicas de enfrentamento ao tráfico.

Os trabalhos devem discutir o tráfico de pessoas com base no “Protocolo de Palermo”, na Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e no Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e seguir as normas previstas nos editais disponíveis do sitio do Ministério da Justiça. Os/as vencedores/as receberão diplomas e prêmios em dinheiro.

Para consultar os editais ou obter mais informações, acesse: www.mj.gov.br/traficodepessoas

FONTE: Adital


segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Themis pode se dar ao luxo de usar uma venda, mas o juiz não

Texto copiado e colado do blog do Juiz Rosivaldo Toscano Jr.

Gerivaldo  Neiva*

“Os argumentos de autoridade têm pouca importância – as “autoridades” cometeram erros no passado. Voltarão a cometê-los no futuro. Uma forma melhor de expressar essa ideia é talvez dizer que na ciência não existem autoridades; quando muito, há especialistas.”
Carl Sagan

Esta semana julguei um caso de furto em que o acusado subtraiu um aparelho de DVD da casa de um primo. O rapaz chamou a polícia. Foram a casa dos pais do acusado e lá o aparelho foi devolvido.
Antes do início da audiência, a vítima pediu para por fim ao processo, pois a coisa já tinha sido restituída, tinha sido reparado o dano pelo seu primo. Eu o informei de que no Brasil tal proceder não era permitido. Ele estranhou, obviamente. E perguntou se sempre era assim. Ficou mais atônito quando eu disse que não. Quando expliquei que se seu primo (que era revel, diga-se de passagem, pois se entregou de vez ao crack) fosse um empresário que sonegou impostos ou que se apropriou dos valores das contribuições previdenciárias dos seus empregados, a reparação do dano teria causado a extinção da punibilidade.
Não julguei o feito em audiência, mas já sabia o que fazer: aplicar o princípio constitucional da igualdade e equiparar o crime de furto, do art. 155 do CP (e o de apropriação indébita, quando ocorrer), ao de apropriação indébita previdenciária, do art. 168-A, do CP. Contudo, precisava fazê-lo com uma base sólida. Precisava estudar a doutrina e a jurisprudência a respeito do assunto.
Em relação à doutrina, pouca coisa. Os manuais, como sempre, tratam acriticamente do assunto. Consultei-os por desencargo de consciência. Fui ao STF. Encontrei alguns poucos casos. Imprimi, li e estudei todos os precedentes. Em todos, repito, em todos eles havia falácias e erros de interpretação que comprometiam a validade ou legitimidade dos argumentos.
Quem estuda a jurisprudência dos tribunais superiores sabe bem que hoje se julga por remissão. A demanda é tão alta que não há tempo para se dedicar aos casos com a atenção que eles merecem. Termina havendo o que chamo de “efeito fórmula pronta”: busca-se apressadamente uns precedentes e, pronto, caso resolvido. Resolvido?
Em poucas palavras, uma vez que num post de blog não dá para fazer maiores digressões, os precedentes mais recentes do STF são os seguintes: HC 91.065/SP, HC n. 75.051 e HC 87.324/SP. O primeiro remete ao seguinte, e assim sucessivamente, bem como a outros bem antigos: RE 88.709, de 1978; HC 47129, de 1969; RCH 49.073, de 1971; RHC 59.033, de 1981; RE 104.270, de 1985.
Isso não seria nada demais, se qualquer dos precedentes, novos ou velhos, servissem para o deslinde da questão. Mas não, porque: 1º - ou tangenciam a discussão, e simplesmente dizem que não pode porque não pode; 2º - e/ou remetem a precedentes impertinentes, que: a) não versam sobre a questão de aplicabilidade do princípio da isonomia; b) ou são anteriores à lei que instituiu a desigualdade de tratamento. Isso é um sintoma de que a práxis judiciária não cuida de verificar a contemporaneidade dos precedentes que usa. Não há uma consciência histórica. Gadamer, no "O Problema da Consciência Histórica", teceu severas críticas a esse modus operandi.
Como bem alertou Rosmar Rodrigues Alencar (Efeito Vinculante e Concretização do Direito), a aplicação do direito nop Brasil “evoluiu” assim: 1º - aplicação pura da lei; 2º - descobriu-se a Constituição como fundamento de validade da lei; 3º - aplicação hierarquizada de precedentes de tribunais superiores, com prestígio do efeito vinculante, ainda que não o sejam.
E a “verdade” desce por gravidade, para aqueles se colocam abaixo. Respeitam-se os precedentes sem questionar seus (des)acertos. E a injustiça campeia.
Portanto, sempre é bom se questionar. Questionar as "verdades" promanadas dos discursos jurídicos. A decisão acertada de um caso concreto quase sempre vai além de qualquer fórmula pronta, de qualquer homogeneidade.
No desbravamento de uma decisão justa, a jurisprudência dominante pode até ser um norte. Mas jamais deve ser tomada como timoneiro. Este tem que ser o juiz do caso. Se, na viagem em busca da historicidade de um caso, o juiz navega pelo mesmo mar outrora atravessado pelos precedentes, as águas serão sempre outras... É preciso atenção no vento e no tempo, para que o veleiro siga pela corrente certa. Nessa viagem, Themis pode se dar ao luxo de usar uma venda, mas o juiz, que a conduz, não.
Semana que vem postarei a sentença. Mais uns dias o artigo. Está quase terminado.
              Blog Rosivaldo Toscano Jr.



sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Cada qual no seu cada qual: Juiz não é inquisidor e nem investigador

 Galileu frente ao tribunal da inquisição romana, pintura de Cristiano Banti

Gerivaldo  Neiva*

Autos: 000343-06.2011.805.0063
Preso em flagrante: Pedro Santana de Almeida

A Autoridade Policial apresentou a este juízo o presente Auto de Prisão em Flagrante de Pedro Santana de Almeida, acusado da prática do crime previsto no artigo 155, §4º, I, do Código Penal Brasileiro.
Consta dos autos, em síntese, que o acusado teria sido encontrado por policiais militares, atendendo solicitação da vítima, no mercado municipal desta cidade ao lado de um Micro System marca CCE com duas caixas de som, tendo também confessado que havia subtraído um rádio portátil da residência de outra pessoa e que estaria em sua própria residência. Por fim, informaram os condutores que se dirigiam para a residência do acusado quando receberam informações de que o Micro System havia sido furtado de uma terceira pessoa. Por tais razões, os policiais militares lhe deram “voz de prisão” e o conduziram à autoridade policial para lavratura do respectivo auto de flagrante.
Interrogado pela autoridade policial, disse que se chama Pedro Santana de Almeida, conhecido como “Zezinho”, brasileiro, solteiro, sem prole, analfabeto, filho de Zé e Ana, natural de Monte Santo-Ba. Negou que tivesse furtado o Micro System e, em seguida, confessou que a primeira vítima teria lhe convidado para “manter relações sexuais, porém não tinha dinheiro e não chegou a fazer sexo com ele, mas mesmo assim pegou o rádio portátil dele e foi embora”. Acerca de sua qualificação, respondeu ainda: “que foi criado por seus avós maternos, os quais já faleceram, sabendo que sua mãe faleceu quando este tinha um ano de idade; que seu pai faleceu há cerca de oito anos; que se recorda que tinha Certidão de Nascimento e Título Eleitoral, mas ambos os documentos foram perdidos. Que o interrogado não tem nenhum parente a quem comunicar sua prisão nem possui dinheiro para contratar advogado”.
Não consta dos autos qualquer documento identificando o preso como sendo, de fato, Pedro Santana de Almeida e não cuidou a autoridade policial de empreender diligências para identificar oficialmente a pessoa presa que lhe foi apresentada ou informar sobre seus antecedentes.
Tem-se, portanto, que está presa, acusada de crime de furto de rádio portátil e aparelho de som, na Delegacia de Policia desta cidade, uma pessoa que diz se chamar Pedro Santana de Almeida, sem documentos, analfabeto, não identificado pela autoridade policial, sem pai e sem mãe vivos e que, aliás, são mortos há muito tempo e sabe apenas que se chamavam Zé e Ana.
Vê-se, então, que o mesmo Estado que “deu voz de prisão” não é capaz de identificar civilmente, por deficiência ou desídia da Delegacia de Polícia, a pessoa presa por seu aparato repressivo. Não se sabe, com certeza, em consequência, quem de fato está preso na Delegacia de Polícia desta cidade. Sendo assim, não sendo o Juiz um inquisidor ou investigador, mas garantidor do cumprimento da Constituição, não há como manter uma prisão em flagrante nestes termos.
Mesmo assim, por cautela deste juízo, o Cartório da Vara, através da certidão de fls. 13, informou que “nada consta” contra Pedro Santana de Almeida.
Além disso, considerando que o preso seja mesmo, de fato, Pedro Santana de Almeida, segundo o disposto no artigo 310, parágrafo único, do Código de Processo Penal, o Juiz, quando da análise do Auto de Prisão em Flagrante, deverá conceder a liberdade provisória ao acusado quando verificar a inocorrência das hipóteses que autorizam a prisão preventiva.
Isto posto, também considerando as circunstâncias do “flagrante” e que os objetos supostamente furtados foram entregues às vítimas, por não verificar qualquer das hipóteses para a prisão preventiva, CONCEDO, de ofício, a liberdade provisória à pessoa que se encontra presa em virtude do flagrante em apreço.
Expeça-se o Alvará de Soltura.
Retornem-me os autos com o Inquérito Policial ou Denúncia.

Conceição do Coité, 10 de fevereiro de 2011

*Gerivaldo Neiva é Juiz de Direito na Bahia e membro da Associação Juízes para a Democracia.