quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O PECADO DO PADRE HOUTART


Residindo atualmente em Salvador – Bahia, o historiador e teólogo EDUARDO HOORNAERT nasceu em Bruges, na Bélgica. Militante do chamado Movimento dos Padres Casados, estudou na Universidade de Lovaina, em seu país natal, trabalhou algum tempo na África e há muitos anos atua no Brasil. No artigo abaixo ele comenta  recente escândalo de pedofilia na Igreja Católica, envolvendo sacerdote belga que foi um dos idealizadores do Fórum Social Mundial.


O pecado do padre Houtart

Eduardo Hoonaert


1. No apagar das luzes de 2010, a igreja católica da Bélgica ficou de novo abalada por um forte terremoto, igual ao de junho passado, quando foi revelada a pedofilia do bispo de Bruges Roger Vangheluwe. Desta vez foi o famoso padre François Houtart, ‘papa da antiglobalização’ e ícone mundial da igreja da libertação, hoje com 85 anos de idade. Jovem padre, ele se entusiasmara com as esperanças suscitadas, na igreja belga aburguesada dos anos 1950, pela fundação da JOC (Juventude Operária Católica) pelo padre Cardijn, colega da mesma diocese de Bruxelas. Em 1954, ele viaja para La Havana (Cuba) a fim de participar de um congresso jocista naquela cidade e fica impressionado com a situação da América Latina. Essa impressão vem confirmar as simpatias que ele sentira durante seus estudos na universidade de Lovaina, com estudantes latino-americanos como o peruano Gustavo Gutiérrez e o colombiano Camilo Torres. Houtart decide dedicar sua vida à libertação da América latina e do terceiro mundo em geral (incluindo África e Ásia) das garras do capitalismo do Atlântico Norte. Essas suas intuições combinam com as do historiador americano marxista Immanuel Wallerstein, do qual herda o esquema histórico básico de sua interpretação do mundo. Em 1976 ele cria o Centro Tricontinental (Cetri: América Latina, África e Ásia) e a sustenta durante muitos anos por meio de estudos de alto valor científico e por duros embates com o episcopado, a direção da Universidade Católica de Lovaina e o establishment belga. Embora tenha mais intimidade com aquela parte da América Latina que fala espanhol do que com o Brasil, ele escolhe a cidade de Porto Alegre para receber, em 2001, o primeiro ‘Fórum Social Mundial’ (‘outro mundo é possível’), pensado como contrapeso ao foro ‘capitalista’ de Davos.

Pouco tempo atrás, diante da crescente projeção mundial do nome de Houtart começa a circular pela internet uma lista que visa reunir assinaturas para sua candidatura ao prêmio Nobel da Paz de 2011. Entusiasmado, eu juntei meu nome à lista. E é exatamente com essa lista que, como num drama grego, começa a história. A sobrinha do ‘cônego François’ se revolta com a ideia de ver seu tio ser elevado, diante dos olhos do mundo inteiro, às alturas da santidade, já que ela o tem como pecador. Nos idos de 1970 ele teria abusado do irmão dela, então com oito anos de vida. Diante da comissão Adriaenssens, instalada em comum acordo entre a igreja e o poder judiciário da Bélgica, ela revela a identidade do ‘abbé A’ na lista dos clérigos pedófilos publicada em setembro passado (houve 475 queixas, 7 vítimas se suicidaram e muitas recebem neste momento ajuda psicológica). ‘É meu tio’, declara ela. Suas palavras detonam uma bomba incendiária no universo católico da Bélgica, já abalado pelos constantes noticiários acerca de pedofilia clerical. Quais urubus em cima da carniça, os jornais se precipitam sobre a notícia. Em questão de dias, Houtart despenca do mais alto dos céus para o mais profundo dos infernos. O próprio Centro Tricontinental (Cetri), mimo de seus olhos, o expulsa de suas fileiras.

2. Neste ponto existe o perigo de o(a) leitor(a) desta mensagem despencar também para o drama grego e esquecer o evangelho. No capítulo 8 (versos 1 a 11) do evangelho de João, Jesus diz: ‘Quem não tiver pecado, lance a primeira pedra’. Há quem contra-argumente invocando o capítulo 17, verso 2 do evangelho de Lucas, onde se lê que ‘ é melhor ser jogado no mar com uma pedra de moinho no pescoço do que causar a perda de um desses pequenos’. Falta interpretar aqui de forma correta o termo ‘pequeno’ (em grego: mikros) do texto evangélico. Não consta que a tradução do termo grego por ‘criança’ seja a única. Jesus pode estar pensando em outros ‘pequenos’, não crianças. Pois ao longo dos evangelhos ele sempre se mostra compassivo e misericordioso diante de falhas sexuais (veja o texto do evangelho de João acima). Ele recomenda perdoar sempre, em todas as circunstâncias. No evangelho de Mateus, Pedro pergunta a Jesus, com impaciência: ‘Quantas vezes devo fechar os olhos sobre as falhas de meu irmão? Sete vezes?’ E Jesus: ‘Não sete vezes, mas setenta vezes sete vezes’ (Mt 18, 21-22). Nada é fatal no discurso evangélico, tudo passa pelo crivo do perdão. O evangelho não é um drama grego e figuras fatais como Prometeu ou Édipo não cabem nas narrativas evangélicas. O princípio do perdão liberta o discurso evangélico da dramaticidade fatal. Eis uma das lições mais difíceis do evangelho, como comprova a história do cristianismo histórico. Pois até hoje os pecados sexuais costumam ser expressos em termos fatais (são chamados de abomináveis, inomináveis, indizíveis), enquanto os pecados sociais (não assinar a carteira de trabalho da empregada doméstica, por exemplo) costumam aparecer de leve (quando aparecem). Para mim, foi uma novidade ouvir de Dom José Maria Pires (não me lembro bem as circunstâncias): ‘o pecado social é mais grave que o pecado sexual’. É raro encontrar uma declaração que defina de forma tão lapidar e direta a diferença entre moral católica tradicional e moral evangélica.
O difícil no caso de padre Houtart e em outros casos de pedofilia é manter três atitudes fundamentais:
(1) afirmar com ênfase que a pedofilia é um pecado grave, não por ser de caráter sexual, mas por ser um ato de agressão contra uma pessoa indefesa, que pode levar à destruição da personalidade e ao suicídio;
(2) descriminalizar a sexualidade que é um dado da natureza humana e, portanto, não tem nada a ver com pecado. Somos sexuados por natureza. Há mesmo teólogos que definem o ato conjugal como um sacramento, um ‘sinal visível de uma graça invisível’;
(3) desdramatizar o que se relaciona com sexo, ou seja, perder a ‘malícia’ que provém de uma visão destorcida da sexualidade. Uma senhora me disse que certa vez Dom Helder ‘falou que eu era uma mulher bonita’. Ela interpretou essas palavras como uma ‘cantada’, ficou confusa e escandalizada. Só mais tarde compreendeu que não havia malícia alguma nas palavras do bispo, mas que ela fazia uma interpretação maliciosa. Durante séculos, o catolicismo foi um caldo de anti-sexualismo e o eco das condenações eternas ainda ressoa em nosso subconsciente cultural. Temos medo do que somos e inibimos nossas expressões naturais, uma vez que ficamos tolhidos(as) por injunções deformadoras de nossas personalidades.

Fonte: Adital

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