domingo, 23 de janeiro de 2011

QUANDO O DIREITO MENTE

Reno Viana *

Chega a ser inacreditável o distanciamento que, no Brasil, o discurso jurídico tradicional sempre manteve em relação à realidade concreta do nosso país. Em determinadas situações a farsa é tão escandalosa que poderia ser caracterizada como uma deslavada mentira.

Esse alheamento, a meu ver, esteve evidenciado em recente episódio envolvendo o livro A.L. Machado Neto: o intelectual na província, lançado pela pesquisadora Ana Angélica Marinho Rodrigues. Às vezes, no Brasil, os operadores do Direito estão tão desorientados que se comportam como se não vivêssemos nos trópicos, mas na Europa. Talvez em outra época, quem sabe na chamada belle époque, antes da conflagração da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa.

São muitos os exemplos desse distanciamento desvairado, nas diversas expressões do Direito. Vejamos um caso extremo, dentre tantos outros. As disposições da Constituição Federal vigente após 1969 asseguravam a inviolabilidade dos domicílios e imputavam a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos detentos. Conforme já foi amplamente provado, na realidade concreta o próprio Estado efetuava prisões sem qualquer mandado judicial, sob a forma de sequestros obviamente ilegais, empregando de forma sistemática a tortura como peça essencial dos seus inquéritos, procedimentos ilegítimos que, acolhidos judicialmente, fundamentaram muitas condenações.

Recentemente, embora em circunstâncias mais brandas e de forma mais sutil, tivemos outro exemplo desse comportamento desnorteado. Na Bahia, um ilustre jurista contestou a veracidade da expressão utilizada pela pesquisadora Ana Angélica Marinho Rodrigues, em seu livro A.L. Machado Neto: o intelectual na província. Segundo o respeitado cidadão, ante a qualidade do Direito em nosso Estado, a Bahia não poderia ser considerada uma província !

O próprio A.L. Machado Neto (1930-1977), que em 1958 publicou um livro chamado Valores Políticos de uma Elite Provinciana, se vivo ainda fosse certamente teria achado inusitado um comentário tão distanciado dos fatos.

Falecido precocemente aos quarenta e sete anos de idade, o jurista e sociólogo baiano A.L. Machado Neto deixou mais de trinta livros publicados. Na segunda metade do Século XX foi muito forte a sua presença e todos conheciam o seu célebre Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, livro lançado em 1969 e que teve sucessivas reedições.

Seu nome costuma ser associado à chamada teoria egológica do Direito, da qual teria sido um solitário adepto no Brasil.

Antes de começar a estudar Direito tive acesso a um outro livro de A.L. Machado Neto, escrito por ele em parceria com Zahidé Machado Neto, sua esposa. Era o manual intitulado Sociologia Básica, lançado em 1975 e que teve também sucessivas reedições. Hoje considero ingênuo esse livro, inclusive quando comparado aos outros livros do mesmo autor. Outro livro dele sobre tema correlato, intitulado Sociologia Jurídica, lançado em 1973 e também com sucessivas reedições, é de qualidade muito superior.

Mas o fato de um intelectual possuidor de poderosíssima mente teórica ter que lançar manuais didáticos de nível básico reflete justamente a circunstância do trabalho intelectual na província. Se trabalhasse na metrópole, com certeza teria espaço para se dedicar apenas às pesquisas avançadas, sem ter que se dedicar também ao magistério elementar.

Nunca fui adepto da teoria egológica do Direito. Todavia, penso ser muito grande a importância intelectual de A.L. Machado Neto, mas por outro motivo. Sua extensa obra ressalta a historicidade profunda das várias expressões do Direito, enquanto fenômeno humano umbilicalmente ligado aos fatos sociais.

Essa análise dos aspectos sociológicos da experiência jurídica necessariamente nos leva a desviar o foco da atenção, que se desloca das palavras para os fatos. Assim, através da observação atenta da realidade concreta podemos perceber de maneira crítica as mistificações embutidas nos discursos.

Essas não são palavras vazias. O deslocamento em direção aos fatos sociais é uma atitude de prodigiosas consequências.

Enfim, quando o Direito mente, podemos sempre apelar para a Sociologia !

* Reno Viana, Juiz de Direito na Bahia e membro da Associação Juízes para a Democracia, edita o Blog Liberdades Democráticas (reno-viana.blogspot.com)



A.L. MACHADO NETO (1930-1977)















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